25.12.07

White Christmas

Moro num país tropical, abençoado pelos Deuses e bonito por natureza. Pra quê raios eu vou invejar o natal branco dos povos que enfiaram essa concepção de como deve ser a comemoração de um evento religiosos assim na minha cultura brasileira?

Falei para a marininha que o natal é uma forma de descarregar todo o espírito kitsch, brega e exagerado de americanização de nossas vidas antes do ano acabar, deixando espaço livre para uma comemoração de ano-novo que emenda no carnaval e se exprime enfim como nossa própria forma de ser no mundo.

Portanto, o natal é um expurgo, de certo modo. E daí natal ser comemoração familiar e ano-novo ser farra. É início, e queremos começar com o pé direito, e nem sempre começar com a família exprime isso tão bem.

Eu ainda não sei onde vou ver o relógio bater as doze badaladas do dia 31 e primeira balada do dia 1, mas tem que ser em sampa (viajar num feriado assim é atestado de masoquista) e tem que ser novo.

Convites? rs

11.11.07

Da inexpugnável maneira demirragena de ver o universo

Desde os primeiros contatos com os demirrageos, se tem colocado hipótese sobre hipótese sobre como eles pensam para apresentarem o comportamento bizarro que apresentam ante os viajantes que com eles se encontram. Sempre de bom humor durante sua vida cotidiana, o que é demonstrado pelos diversos representantes de nossa casta que com eles já conviveram, quando se vêem ante um passante qualquer se colocam a urrar como se tomados por uma fúria descomunal e se colocam a correr atrás de suas canelas, não raro mordendo-os com ferocidade e causando ferimentos que, embora jamais sejam graves, sempre são dolorosos e deixam as cicatrizes características de suas arcadas dentárias poderosas.

Talvez uma melhor compreensão do fenômeno e de nossas opiniões sobre isso prescinda de uma nota historiográfica sobre este povo e seus primeiros contatos conosco.

Os demirrageos foram injustamente tachados de povo primitivo e digno de extermínio, e durante muitos ciclos foram abatidos pelos primeiros exploradores de seu território.

Apenas após anos de invasões injustificadas a suas clareiras e matas alguém se preocupou em entender aquele povo. Como é de praxe de todo povo que chega a um novo território, declaramo-nos donos daquela região e superiores aos seus antigos habitantes. Quando se viu que nada havia de interesse econômico na região (ainda não havia iniciado-se a corrida aos minérios de raspina, abundantes na região e atual fonte de renda dos demirrageos no comércio interpovos) abandonou-se o interesse comercial e iniciou-se o científico. Alguns corajosos antropólogos interpovos se dispuseram a fazer observações acerca deste povo, tentando não ser notados e entender quem eles eram. Descobriram um povo dotado de imensos dotes artísticos, com obrigações artísticas inerentes a sua cultura (não há demirrageos que não seja artista em alguma modalidade) e uma liberdade de expressão e pensar que não encontrava paralelo em nenhum outro povo. Ainda mais, se descobriu que se alimentavam essencialmente de algas e peixes, que coletavam em rios sempre distantes ao menos mil passos da aldeia.

As aldeias dos demirrageos são um espetáculo à parte. Não existe unidade arquitetônica alguma. As casas são dispostas em círculos, e nas aldeias maiores, onde não cabem todas as casas em um único círculo, diversos outros são montados em uma superestrutura que lembra um conjunto de anéis. Todos participam da construção de cada casa, que é desenhada por seu dono, e este é o único que não faz nada durante a construção. São feitas de palha, madeira, pedra, barro ou mesmo cavadas no chão, em rocha pura ou montadas sobre palafitas inúteis.

Com o tempo, os nada discretos cientistas acabaram sendo aceitos como parte da paisagem por alguns demirrageos, que os diferenciavam dos antigos exploradores de minérios. E não mais corriam atrás deles com os caninos avantajados à mostra. E então se fez um primeiro contato interpovos. Qual não foi a surpresa quando se notou que era um povo de incrível, embora excêntrico para nossos padrões, senso de humor. O dialeto demirrageano possui mais de duzentas palavras para brincadeira ou piada, cada qual discriminando um tipo de chiste. Grunhem bobagens uns para os outros constantemente, e nunca se irritam uns com os outros, a não ser com relação à construção das casas, quando se desafiam pelo seu gosto arquitetônico. Então, escolhem um árbitro, pois julgam ser desonroso decidir por si mesmos quem é o vencedor, e disparam uma sequência de esculhambações grosseiras um contra o outro durante cerca de um minuto.

Às vezes mordem os calcanhares do juiz.

Aquele que melhor ofender ao outro, com as poucas palavras ditas de baixo calão do dialeto e a imensa criatividade para ofender com palavras infantilóides, tem sua opinião acatada pelo outro, mas deve se submeter a, como prêmio, construir o telhado ou equivalente da casa sozinho.

As discussões são raras, portanto.

Os demirrageos ainda são conhecidos por não serem, em hipótese alguma, monogâmicos, e os cientistas que com eles conviveram por vezes se espantaram com os convites interpovo que receberam e as tocas cavadas no meio da aldeia para prática sexual. Embora existam, aparentemente, dois tipos de indivíduos, não há comprovação teórica de que sejam sexos diferentes. Nunca se dissecou um demirrageo, e as duplas são de indivíduos de mesmo tipo ou diferente de modo aleatório. Sabe-se que independe de estar com um indivíduo do tipo oposto para se dar a gravidez, com duração de cerca de seis meses e postura subsequente de até três embriões, que serão dependentes de seu genitor por até dez anos, quando planeja sua casa e se dispõe a convocar a aldeia para construí-la.

Externamente, os demirrageos tem uma aparência que não é muito diversa dos de nossa casta, apenas diferindo pelo fato de possuírem coloração alaranjada, com extremidades azuis que se camuflam com a vegetação, e a presença de dois olhos a mais nas laterais da cabeça. De resto, o plano de membros inferiores, tronco, membros superiores, espinhos costais, leques escapulares membranosos e cabeça mediana com órgãos dos sentidos é igual, exceto com relação à mandíbula forte e protuberante (o nariz adunco e afilado de nossa casta é extremamente atraente para os eles, desprovidos desta ornamentação; mas nossos olhos pequenos, metade do tamanho dos olhos demirrageos que alcançam até oito centímetros de diâmetro, é-lhes pavoroso). E a pelagem superior, via de regra, segue certas semelhanças com o gosto arquitetônico de seu possuidor. Os cabeleireiros dos demirrageos são conhecidos interpovos.

De qualquer modo, não há por quê supor que são primitivos, mas simplesmente não haviam alcançado um nível tecnológico avançado nos mesmos aspectos que as demais castas, embora, sua medicina se aplique a todo o interpovo .

19.8.07

Totem

A vida é minha crença.
Nela, não há espaço para cordeiros. Na vida, o belo da existência é a beleza da superação. Não há espaço para aquilo necessitado de um pastor a nos alimentar, guiar e a quem vez ou outra é concedido o direito de matar uma de suas rés em sacrifício para se alimentar.

Todos os povos ligados à vida em sua pureza e essência escolheram o totem de sua imponência, de sua força, de sua nobreza e coragem. A lebre, o corvo, o leão, a harpia... O elefante, o touro, a serpente... a onça, o boto, o cervo. Não há espaço para tolos teleguiados na vida. Não há lugar para quem não nada contra a corrente.

O tamanduá quando rompe o cupinzeiro crava suas garras no mamilo de Gaia e lá bebe o sumo da vida na forma de milhares de insetos. O cadáver destruído por vermes e carniceiros é resgatado ao pó de sua origem e volta ao ciclo de nutrição e retribui pela carne que teve. O grito de nascimento da baleia e o assobio de sua primeira respiração são os cânticos de agradecimento ao seu direito de enfrentar a vida e superar suas imperfeições, pondo-as à prova contra o substrato do existir.

Meus avatares não são os profetas da servidão. Jesus era de escorpião. Maomé deu suas lições a Che Guevara. Buda renasceu para lutar sem um tapa sequer como Gandhi, e venceu. É mais nobre o Para-atleta que o perfeito milionário do futebol italiano. Ali é a manifestação do Olimpo em sua plenitude, onde nasce um fulgor de luz, uma dádiva dos deuses e ergue-se a vida benigna. E onde as trevas gritam e sacodem a alegria de terem feito seu serviço de fazer erguer-se o herói.

A águia assume seu lugar ante o sol e abre suas asas sobre o continente, sobre o oceano, sobre o mundo. Ela abate os cordeiros, submissos a seu pastor. E ainda assim os pastoreados a invejam. Pois seus chifres de cordeiro são aparados. Pois ao que aceita seu papel de ovelha não é dado o direito de bramir e tomar seu lugar na montanha, nos picos mais altos de seus ancestrais selvagens e pagãos.

23.7.07

Para raros.

Era pra esse texto ter ido ao ar semana passada, mas ele merece uma atualização depois de tudo acontecido em 3 fins de semana (e neste em especial).

1 – É possível ter uma conversa fantástica com pessoas que você nunca viu na vida, atravessando a noite entre o filosofar e o rir (muito). Mesmo na mais estranha das festas, com o pior dos vinhos, na curva do rio mais cheia de perdidos. E notar que assumida nossa amplitude de faces, fica mais fácil ser você mesmo e ser diferente para cada um de seus companheiros de mesa.

2 – É possível começar uma conversa com as pessoas mais próximas, sobre os assuntos mais relevantes, e simplesmente se saturar disso. Ver suas preocupações e assuntos serem transformados em escada para falar de problemas e aflições superficiais dos outros, e absolutamente ser imperceptível a seu interlocutor notar que naquele dia específico você não é capaz de ser conselheiro, piadista ou penico de nada. Que você não quer ser a si mesmo naquele momento. Que não vai dar apenas o de sempre.

Dito isso, voltemos.

Há feras dentro de nós. Lobos e macacos. Disputam o cerne de cada humano desde o dia em que a humanidade nasceu. Divididos evolucionariamente entre sermos primatas coletores fortemente hierarquizados e caçadores ativos e coletivamente orientados, escapamos da trilha da seleção antes de termos uma resposta fácil sobre quem somos.

Nossos instintos de animal social são díspares. Abarcam modos de socializar em extremos muito afastados entre o lobo e o macaco. E vez por outra, temos a consciência de que há uma coisa em comum entre ambos:
Lobos e macacos possuem seus renegados.

Neste lobisomem que somos todos, agregando caracteres de carnívoro e de primata, experimentamos uma solidão interna dos perdidos, e descobrimos valores que definem os lobos que desejamos ao nosso lado e os macacos que queremos para fazer a catação mútua de piolhos. Às vezes, são ambos num mesmo indivíduo. Às vezes, e não há diferença de importância, quem temos ao nosso lado é só uma dessas coisas. E é igualmente desejado.

O que não suportamos é o lobo que não participa da caçada e espera pelos nacos de carne do grupo, o macaco que só pede para tirarmos seus incômodos e não tira de ninguém. Mas nossa cultura de ovelhas os acata. Você conhece o tipo. Ele está do seu lado quando você dorme, debaixo do seu travesseiro, e se você bobear, ele saltará para dentro de sua mente e o dominará. E sequer será percebido, pois sua vida é tão leve que te faz flutuar sobre os outros.

Ele espera do lado de cada um.

E aqueles de nós interessados em não ser submisso ao reles sobreviver vêem claramente este fenômeno. Vêem em si e vêem em outrem. Mesmo nos mais amados, nos que desejamos mais próximos, aparece e fere o jeito de ser dos espelhos, que só recebem as nossas cores e imagens, mas não oferecem seu calor. Os renegados vêem claramente os unilaterais pois, opostos a estes, sobrevivem sem estarem imersos no conjunto do grupo.

Eu soube que não estou livre de ser unilateral. Mas assim libertei-me e encontrei o alvo da crítica. Encontrei o incômodo causado pelo outro quando o vi em mim.

Cansei-me da unilateralidade. Não perderei os que me são caros, mas serei igualmente espelho: darei o reflexo do que me é ofertado, até prova em contrário. Valorizar o novo, que me vê hoje, sem os vícios de saber de um só de mim, em um só aspecto cômodo e imutável.
E, (feridos não tem ajuda) os apegados a um “eu” só inexistente na cabeça delas deixarei à sua própria sorte. E sei que me doerá.

A vida é mais que instinto. Acima do lobo, acima do homem das cavernas, acima do alienado da civilização, nossas asas se abrem e nos permitem ver onde podemos pousar e de onde devemos voar para longe. Acima do macaco e da contradição, temos arte.

7.7.07

Mil coisas

Se as coisas andam meio usuais no cotidiano, não posso falar o mesmo do cérebro. Tente acompanhar uma mudança radical no modo de manejo da tchurma, implantando várias mudanças simultâneas e que não servem de assunto numa roda de amigos; leia "O macaco nu" e tenha mil idéias de postagens para um blog ao mesmo tempo em que começa "O lobo da estepe" do Hesse; não consiga encontrar com as pessoas com que você quer falar por rolos de vida comuns e se perca com isso; se veja fazendo besteiras de vez em quando; pense outras e fique tentando contê-las dentro da boca bem na hora em que muitas outras coisas querem sair; fique espiritualmente ante as opções de caminhos diversos; seja tentado por voltar ao simples teatral mas só se sacrificar seu já escasso tempo; tenha rolos de dinheiro brasileiros básicos; tenha dez ou vinte possibilidades de estudos diferentes, uma possibilidade de ser convidado a virar a mesa da rotina...

Isso dá nó na cabeça de qualquer um. Qual eu posto primeiro?

7.6.07

FUTHARK

Frey, dos Vanires, lançou a sorte ao mundo e nos impulsiona a deixar a passividade qual um feroz auroque ao avançar pelas charnecas com sua força primitiva, pura e oportunista. E Thor, dos Aesires, foi daqueles que, ante as novidades, superou com sua força as mazelas da vida, qual seu pai, Odin, através da sabedoria e das palavras. A mensagem da existência viajou sobre rodas, decidida, capaz de, como o fogo, destruir, purificar ou recriar, qual dádiva, presente ou dom, com o qual devemos compromisso e sem o qual não haverá alegria naquilo que caminha ou nas lembranças.

Mas assim como o ar traz as consequências voando para o hoje, devemos lidar com as necessidades da vida com cautela, friamente, como o gelo, que tantas vezes é nosso obstáculo. Mas a Terra é generosa e seus ciclos se repetem, inexoravelmente, trazendo em seu bojo a morte e a renovação, o nascimento e a colheita, a lenha e as feras. Assim, temos nossas histórias para contar em frente à lareira, lições e lendas, mitos e conselhos, onde a verdade é revelada. Nos expomos qual caniços, sabedores de que como eles, temos nossos espinhos e sabemos nos proteger, e cuidamoso para não chegar a extremos. Assim, o Sol brilha sobre nós, traz a saúde e testa nossos limites.

Nossa coragem é a de Tyr, o guerreiro, e nossa persistência nos leva em frente desde o nascimento, e nos renovamos sempre, através do impulso, e sob as benções das deusas. Qual cavalos, somos inconstantes, inquietos, mas controlados e sabedores de quem somos. E qual homens, saímos de nosso conforto e iniciamos nossa jornada atrás de nossos potenciais, além da água, que é a transcendência, que traz nossas emoções, nos permite o descontrole e nos leva sem esforço em suas marés e fluxos. A vida nos leva à conclusão de nossa travessia, em êxtase como Ing em suas reviravoltas, ou como a aurora que dissipa o véu dos mundos e revela o que a noite ocultava, ultrapassando as trevas e levando à compreensão dos opostos. Só assim completamos o círculo e reencontramos nossas raízes ancestrais, colhemos nossos frutos plantados há muito, e nomeamos nosso lar.

Assim são os passos no desconhecido de nosso destino, ou o mistério supremo da nossa jornada, o que apenas os fados poderão responder.

16.5.07

When your day is done and you wanna run; cocaine... She dont lie, she dont lie, she dont lie...

O papel do xamã é descobrir por trás do véu da humanidade aquilo que a natureza, através dos deuses que a personificam, tudo que foi, é e pode vir a ser. Usar deste conhecimento para abrir os olhos de seu povo, e ferir as comodidades e destruir as ilusões que limitam a vida e afastam da felicidade os comuns dos mortais.
Por esta visão, o Xamã, o Hierofante, é uma espécie de herói, resgatando das trevas profundas, do âmago do monstro marinho do subconsciente coletivo, e muitas vezes pagando um preço em incompreensão ou até em sua existência física, normalmente injusto com o benefício que ele pode trazer.
O aprendizado para se controlar durante este mergulho é duro, árduo, longo e desprovido de glamour e prazer. Isto virá, sim, durante o mergulho, e é necessário para que se possa voltar á tona vivo, bem e mais sábio.
Ou os horrores enterrados fundo na alma do mar o carregarão para as profundezas e nunca mais o deixarão sair.
Não é fácil entender o caminho até lá em cima ou até lá embaixo da mente. Falar com as mentes ali presentes, então, demora e exige uma carga de interpretação que ainda estamos longe de adquirir como mortais. Então, no decorrer dos séculos, facilitadores foram evocados de todas as aprtes do mundo natural para isso: Rituais, animais guias, anjos da guarda ou demais guardiões e condutores espirituais, plantas de poder, tendas de suor, isolamentos e jejuns, cogumelos alucinógenos e por aí vai.
Uma lenda perunana diz que um dos primeiros segredos dos incas roubados foi o de sua principal planta de poder sagrada. Cansados de escalar sem costume as montanhas e abismos onde os incas se refugiavam, os conquistadores espanhóis rapidamente descobriram que uma planta da região era mascada pelos nativos para suportar os efeitos da falta de oxigênio.
A planta era usada como ponte para o mundo dos ancestrais. Ela teria ensinado o complexo alfabeto de nós em cordões usados pelos incas, a arte de construir e como viver nas montanhas mais altas do hemisfério sem sofrer.
Quando os estrangeiros massacraram uma das maiores cidades da região do Peru, conta a lenda que o sacerdote, que também tinha as características de xamã, lançou uma maldição naqueles homens. A planta que eles roubaram para seus próprios propósitos iria ser a ruína deles, e os destruiría e aos seus familiares devido à ganância, e a mesma ganância faria a maldição mais a mais forte.
O que mais mata hoje no crime? Qual o comércio ilegal que mais fatura no mundo?
Aquela planta tomou de muitos suas vidas. Ela ofereceu aos descontentes, aos pobres de espírito, aos fugitivos da realidade dura de se enfrentar uma saída. Mergulhava-os no mundo interior onde só os xamãs podem ter acesso e saírem a salvo. E os deixa lá para serem devorados pelos monstros crescidos na futilidade, no desespero e na falta de perspectiva.
J. J. Cale tinha razão. Ela não mente. Mas ela é rudemente sincera. Até demais.

5.5.07

Carol

Acabo de" salvar" junto com minha prima Ana a Carol, outra prima, de um seqüestro.

O mais engraçado é que ela nem sabia que estava sendo sequestrada. Isso só estava acontecendo na cabeça da mãe dela, na mente coletiva de uma gangue daquelas que ouvimos falar nos programas sensacionalistas e nos piores pesadelos de todos os demais.

Sabe o que é mais estranho? É exatamente como reza o clichê. O celular da suposta vítima está desligado, portanto, ela está sem contato. Uma ligação aparece do nada e uma voz chorosa e genérica pede ajuda, uma ligação policial falsa logo em seguida e logo viria algum pedido de resgate ou sei lá o quê. Um acúmulo de lugares comuns de jornaleco.

Ela tinha deixado acabar a bateria, o que me faz pensar que alguém deve ter tentado ligar para ela antes de começar o golpe e descobriu que ela estaria incomunicável. Pessoas, troquem o número se algo assim rolar! Alguma enrolação, e eu me enchi e resolvi ir pra facul dela ver se ela estava no nobre esporte irlandês de encher a cara.

O conhecimento insuperável da botecogeografia de entornos de faculdade foi essencial para achar a Carol, feliz e contente dois segundos antes da gente cair abraçado nela e explicar que só ela não estava em pane na família Avari.

Agora vai virar piada de festa familiar. Mas o entendimento do que é medo passa por aqui!

3.4.07

300!

E enfim eu fui ver algo que eu esperava há mais ou menos uns dois anos: Os 300 de Esparta, ou, como acaba de ficar popular, simplesmente 300.
Quem me conhece vai logo fazer a pergunta clássica: "É fiel ao quadrinho?" e todas as suas variações: "é bom, é melhor ou pior, os atores calharam certo dessa vez, o Santoro dá conta do recado, as imagens são perfeitas?"
Irrelevante. É de longe a melhor adaptação de uma história em quadrinhos já feita. A fidelidade beira o impossível, (pecando apenas pelo tom politicamente correto que permeia o filme todo, mas eu já explico por quê isso pode ser deixado para trás). O autor, Frank Miller, que me perdoe, mas nem ele mesmo adaptou tão bem uma história sua em Sin City quanto Zack Snider com o 300. E olha que Sin City era até agora minha campeã em fidelidade.
Em fidelidade mas não em cinema. 300 consegue a proeza de ser fiel na medida do possível, acrescentar aqueles pedaços que nós colocávamos entre uma cena e outra, funcionar como cinema e não deixar a mensagem esvanecer.
A acusação iraniana de que o filme foi feito agora para falar mal dos persas esbarra em uma coisa óbvia. Não é uma aula de história. Mesmo supondo que 300 espartanos tenham realmente defendido com alguma utilidade o desfiladeiro das termópilas, o que se passa no quadrinhyo não é factual ao extremo. Na verdade, pode ser entendido como mais uma vela na escuridão contra as limitações que o homem coloca a si mesmo a título de espiritualidade, ou sistemas de governo.
Americanos rejubilam-se com a palavra democracia e os espartanos não eram exatamente o que nós chamamos de democráticos? Sim. Os persas não tinham monstros deformados e reis divinizados em batalha? Sim. O filme pode ser visto como uma mensagem política contra teocracias? Sim, e aí os americanos atiram no próprio pé, pois o presidente deles é um dos que levam a bíblia para o campo das leis. O Irã pode se unir aos americanos para protestarem.
Mas o que importa é que os espartanos foram o povo mais durão de todos os tempos. Se alguém poderia ter feito aquilo, foram eles. E Gerard Butler está fantástico como o personagem em quadrinhos mais bem desenhado de todos os filmes. Ele é um desenho ambulante.
E sim, o Santoro foi manipulado digitalmente. Ele não tem dois metros de altura.
E para quem gosta de sangue, é um prato cheio.
Ele tem milhões de defeitos preconceituosos para quem está na onda do politicamente correto. A minha crítica favorita não gostou nada disso (vejam o que ela diz: http://www.lost.art.br/lola_300.htm). Mas eles atenuam até a medula o original. Sem perder a dureza, O rei agora sugere ao corcunda que ele ajude longe da batalha, a rainha tem papel importante, Xerxes não é negro, e os soldados de Esparta não apanham dos outros soldados de Esparta quanto demonstram fraqueza. Isso é ceder ao gosto do grande público, mas se do jeito que está ele já vai sofrer com os mau-humorados críticos do politicamente correto (e lembrando que dois mil anos atrás toda guerra era étnica) Imaginem se o Leônidas despacha o corcunda pro Hades por ele ser disforme. Como ERA o costume de Esparta.
Em suma, não levem mocinhas que se digam virginais ou senhoras conservadoras, não levem intelectualóides e homens de terno e gravata, e assistam sem medo, divirtam-se muito em plena catarse, e lembrem que os bichos são de computação gráfica.
E depois da sessão, quero ver quem não acha que Esparta tinha uma ou duas vantagens sobre o Brasil.

27.3.07

Há mais na vida de um biólogo do que ratos.

Dizem que todo biólogo tem sua cota de ratos para matar. Seja fazendo experimentos em um laboratório, seja desratizando algum lugar. Também há a parte de controle agronômico, experimentos de comportamento, feitura de vacinas e exames de inoculação. Eu sou diretamente responsável pela morte de milhares de ratos, através das mãos de uma equipe e mais uns tantos que serviram de alimento a aves de rapina, lagartos, tartarugas carnívoras, jacarés, cobras e urubus, mas não só bichos estranhos. Raposas, cachorros do mato, gatos-maracajá/palheiro/do mato/pescador, tudo come roedor.

Por isso eles reproduzem tanto. Já pensou sustentar essa filharada toda? Ou manter a espécie sem essa filharada?? Mas ratos são dignos de admiração por vários aspectos. Nada que não se possa superar quando pensamos no quão pestilentos eles podem ser fora do biotério.

Mas há mais na vida de um biólogo do que ratos.
Boa parte de tudo que se faz para defender a vida nesse planeta passa por superar os instintos mais baixos, vis e imbecis dos humanos. Explicar que não se come uma espécie em extinção. Que florestas são necessárias para a correta manutenção dos níveis ambientais equilibrados de nossa sobrevivência. Que não se trafica sagüi para que uma criança apalermada e mimada possa ter um brinquedo, a ser jogado fora quando der sua primeira mordida apavorado com aquilo tudo.

Pensando bem, prefiro ratos. A gente ensina uma vez, e eles aprendem. A gente sabe o que eles vão fazer, e nunca, mas nunca mesmo, eles serão ignorantes abaixo da média dos outros ratos. E mais ainda, eles não destroem por luxo.

Há mais na vida que lidar com esses seres sinistros, os humanos?

19.3.07

REMINISCÊNCIAS

Atenção, é raro algo pessoal postado por aqui, então não me responsabilizo por nada ou ninguém.

Como se eu pudesse. Vamos lá.
Quem já ouviu "American Pie"? É uma música, a única conhecida, de Don McLean, um ótimo compositor de folk-rock (seja lá o que for rótulo) . Fala basicamente daquela sensação de desespero Beat e do dia em que a música morreu. A maioria das interpretações não vai mais fundo do que falar do dia em que o rock era uma coisinha meiga e pura e que teria tido um fim simbólico um pouquinho antes dos dias de rebeldia sem causa e viagens além mundinho limitado.
Este dia teria sido o dia em que um avião caiu com Buddy Holly, Ritchie Valens (ou Ricardo "La bamba" Valenzuela, o primeiro astro latino pop que se tem notícia) e JP "Big Bopper" Richardson.

Três precursores do rock que conhecemos e de fato símbolos do rock antes do estouro rebelde da contracultura.

Por quê uma música que além disso tudo e cheia de referências a outros momentos pop macabros (os terríveis Rolling Stones, a fatídica "Helter Skelter" dos Beatles, dentre outras menos conhecidas) buzinou na minha cabeça por tanto tempo?

Quando eu comecei a mergulhar no "rock-mundo" que me abarca, comecei pelo óbvio: aquilo que tinha em casa. quantidades estratosféricas de Little Richard (eu tinha algo em comum?), Jerry Lee Lewis, Beatles (da fase inicial), Chuck Berry e o rei, Elvis (cujo dia de nascimento é o mesmo que o meu).

Na minha atual fase de me entender, quando o passado dói, o futuro merece um lustro e o presente está muito chato, onde a gente vai buscar entendimento? No que já rolou. E repentino, tenho um aniversário de gente ressuscitada de um passado distante, que misteriosamente se torna presente e importante, e em uma casa rocambole! (o rockabilly tem apelido aqui em casa).

Além da companhia genial, dos risos de ter que aprender a dançar com os professores da casa e da raiva de não conhecer o lugar antes, algo brotou aqui dentro. algo que apagou American Pie e fez com que eu parasse de reclamar que o passado parecia mais divertido. O passado é agora, o hoje vai parecer mais divertido amanhã. Eu ainda vou dançar twist pela casa com uma vassoura aos noventa anos.

E no dia seguinte, eu e a Luciana em mais uma daquelas noites de atualizações da vida, acabamos por descobrir que apesar de nos conhecermos há uns 15 anos e nos falarmos quase que semanalmente há uns seis ainda temos um monte de coisas que não fazemos a mínima um do outro. O passado não existe.

Quer saber? fazendo uma citação, xarope anti-monotonia nunca é demais.

E acho que eu preciso voltar a ser mais noturno...

"Roll over Bethoven!"

10.3.07

Um jantar, ossos e liberdade criativa

Neste exato momento estão subindo os créditos de “Adivinhe quem vem para jantar”, o clássico de 1967 que fez de Sidney Poitier um astro, coroou mais uma vez as carreiras de Spencer Tracy e Katherine Hepburn e trouxe para a tela grande do mainstream a questão racial em technicores muito além do preto e branco.

A despeito de ser um ótimo filme, atual até mesmo no ritmo (que é normalmente o grande empecilho para a maioria das pessoas não-acostumadas ao cinema clássico e viciadas nos fliperamas atuais) e das atuações “actor´s studios” primorosas, ele é um dos grandes exemplos do roteiro planejado de cima abaixo para atingir seus objetivos, isto é, passar uma mensagem específica.

Protagonista, antagonista, situação, influências externas, personalidades, todas são montadas minuciosamente para, no discursivo (na época era necessário) gran-finale, ninguém ficar na dúvida sobre a moral da história.

Preste atenção: nada é coincidência ou acaso. Cada caracter é parte do quebra-cabeça. Cada profissão ou opinião é simbólica. Não fica uma farpa injustificada em todo o filme.

Isso normalmente nasce daquilo que eu comparo com a montagem de um aeromodelo dramático: colocamos a estrutura, acrescentamos motores, laterais, rodas, pintura, hélice, gasolina e só depois botamos o troço para funcionar.

Se você está aqui sabe que eu escrevo. Muito. De tudo. Mas eu escrevo de outra maneira. E, sem desmerecer o roteirista de “Adivinhe...” ou quase todos os seus colegas atuais do cinemão, eu considero uma forma de escrever muito pouco orgânica para o meu gosto.

Eu estudo vida. Meus paralelos quanto ao que chamo de orgânico Vs o mecanizado, automático, robótico são imensos. O esqueleto surgiu na evolução muito depois dos primeiros corações batendo. A pele surgiu depois da respiração. As cores vieram depois da digestão. A vida uterina já funciona quando nem a chamamos assim ainda.

As histórias nascem em caldeirões de protoplasma, sangue e ossos. Elas pulsam e cheiram mal e soltam sujeira pelo carpete. Seus personagens brotam do solo humoso como vermes já independentes, cegos e simples, comendo, babando e respirando.

O esqueleto aparece depois.

Quando começo a escrever, estou nadando na liberdade. Os fatos, o que aconteceu com aqueles personagens pulsa e se lança contra minha consciência. Arremetem até se esgarçar contra as paredes da lógica. Quando o caos primordial passa, e tudo já está lá, e a história já respira por conta própria e consegue se sustentar, se alimentar e interagir com o ambiente externo, tirando dele o que precisa e jogando o que já digeriu, é só então que aparece-lhe esqueleto, pele, músculos. E o verme começa a caminhar para ser um ente complexo.
Histórias nascem nas mentes, não são montadas como máquinas.

20.1.07

O ROCK´N´ROLL ESTÁ VIVO

Houve quem dissesse que o rock estava morto ou, no mínimo, errou.

Se tem algo a que eu sou eternamente grato é ao monte de músicas que minha irmã espremeu no computador. Até elas brotarem lá, vindas sabe-se lá de que balada, de que bares obscuros da noite Paulista, eu estava imerso em um cemitério, saudando os poucos e vagos ecos que vez ou outra vinham do Pearl Jam ou U2. Meu gosto musical necrófago passeava com novidades retumbantes como Red Hot Chilly Peppers ou, chutando altíssimo, Prodigy, de quem eu conhecia uma ou outra música.

Não ajudava o fato de que o século, o milênio começou com uma onda saudosista de quando? Dos meus amados anos de infância, famigerados 80´s. Claro que é fácil ser badalado nesta primeira década do século. Basta ter mais de trinta e lembrar de desenhos antigos, de qualquer coisa com cara fofa que emos usem estampado na bolsa e uma dose e tanto daquilo que era reconhecida, escancarada e hilariantemente exagerado. Você lembra do Supla arrotando no programa da Hebe com a sua banda, a Tókio? Você é bom! Você sabe que o B52´s veio ao Brasil em 1985? Você é um mestre. Você viu o Nirvana no palco? Você é um deus! E eu me encaixo nisso tudo.

E para não dizer daquilo que faz o estofo musical da minha vida. Todos morreram antes ou logo depois que eu nasci. Jim Morrison, Janis Joplin, John Lennon, Elvis Presley, Jimmy Hendrix e por aí vai. Mais uma tonelada de bandas cujos membros já poderiam ter pedido aposentadoria no nosso sistema previdenciário. Stones, Purple, Maiden, Chuck Berry, AC/DC, Scorpions e por aí vai.

E de repente, estou passeando pelo modo aleatório do player e me deparo com Yeah Yeah Yeah´s! Que surto! Eu já vinha sendo preparado de leve com Franz Ferdinand, Pitty, Strokes e White Stripes, mas nada me deixou pronto para ouvir essa banda de nome nada a ver e onomatopéico.

E depois. O som redivivo das Runaways nas Donnas, a regravação ultrasexy de “My Sharona” pelo Veruca Salt (quem lembra o que acontecia com a Veruca Salt da fantástica Fábrica de Chocolates original?) ou a alegria-guitarra-e-som-na-garagem-da- vovó de Motores? E o que é aquilo que toca o povo do Vive la Fete e o Le Tigre? Até bandas já conhecidas tinham sons mais estranhos, como Garbage ou o maluco de cartilha oitentista Marilyn Manson. Mas não me peça para reconsiderar o funk...

Adianta chorar pelo passado? Será que dá para, a esta altura, exigir que uma dessas bandas seja boa para meus ouvidos como é Creedence Clearwater Revival? Treinado, condicionado, minha audição jamais saberá entender Placebo. Mas Placebo é chato. Mas será que vou entender o que raios é o já velhinho Radiohead? E Plastics? E Cansei de Ser Sexy? Peaches? Dominatrix?

Não, admito que jamais verei a genialidade delas, embora isso ainda não tenha tido oportunidade. Meus padrões sabem que independentemente do jeito totalmente diferente de fazer música, ainda não saiu dessa geração nada que se compare a “Misty Mountain Hop” ou “Time”. É bom? Pode até ser, mas é mais ou menos como apreciar comida japonesa. Você pode saber se é gostoso ou não, e até comparar pratos e saber qual cozinheiro faz algo melhor, mas nunca saberá exatamente o quanto já que seu paladar parte do bife com fritas para julgar.

Mas isso não faz com que sushi não possa ser seu prato principal. Isso não impede que eu possa sair honrar meus mortos e ir lá aprender a apreciar essa gente viva e boa pra cacete que está tocando agora em lugares que eu não fui e em rádios que não existem. A melhor música não passava nas rádios, hoje e sempre, até que alguém com mais de trinta tenha ido lá e desbravado.

Long Live Rock´n´Roll! We still crazy after all this years!