26.1.12

E no princípio faltava o verbo...




“Era uma vez a música popular européia. Se casou com a música popular africana e tiveram um filho chamado Blues que, apesar de muito melancólico, era vivaz e inteligente. Porém, não levava muito jeito para a criatividade.

Metade de tudo que Blues fazia era cópia. Ele tinha uma boa idéia, criava cem outras inspiradas naquela, e às vezes elas eram tão parecidas umas com as outras que ninguém percebia a diferença.

Daí veio uma iluminação: e se ele dissesse coisas diferentes de uma para a outra? Afinal, no tempo em que Blues estava mais produtivo, as pessoas tinham inventado uma coisa que substituía a memória, e tudo que Blues cantava era gravado e comparado. Então, Blues começou a colocar palavras contando histórias ou reclamando ou chorando. E essas palavras se tornaram a parte principal do que Blues fazia”.

Bom, vão reclamar que eu disse que blues era pouco criativo. Mas é verdade: o blues é tremendamente repetitivo quanto a suas melodias. Quantas músicas conheces que começam com “TAM-ranranran-Tan... Tum tum, Tum tum, TAm-ranranran-Tan”? Isso faz com que a letra da música seja muito mais importante do que era nos demais gêneros musicais nascidos até então. E isso foi tirado da música folclórica de marinheiros, fazendeiros e demais pobretões do mundo. O Blues criou a letra de música como conhecemos hoje.

Porém, não sofisticou a fórmula. Isso quem fez foi o folk quando se encontrou com o Rock. Um tal de Dylan viu que as letras das músicas eram pouco aproveitadas para expressar opiniões políticas, sociais, de relação em seu nível mais profundo de sentimentos (e deve ter se lembrado que os bardos antigos usavam a música para passar críticas disfarçadamente). Daí ele criou a letra de música poderosa que se tornou o melhor que o Rock pode fazer.

E de repente, todo mundo descobriu o que uma boa letra podia fazer. O pop se apropriou disso. O clássico, a ópera reclamou e disse que ia fazer mais ainda. O blues disse que colocou no jazz e ninguém deu bola. Mas até então a conversa estava equivalente.

Daí o Dylan deu maconha para o Lennon.

Todo mundo discute onde o mundo deu a virada que criou a revolução de costumes dos anos 1960. Foi aí. O Dylan virou para os Beatles e disse que eles tinham o poder de fazer milhões de pessoas pensarem, e não deviam desperdiçar isso só falando de sentimentos, por melhor que fizessem isso.

E logo depois que eles se falaram, os Beatles ruminaram as palavras de Dylan cravadas em suas cabeças (para a versão hilária do encontro, vejam isso: http://www.maniacworld.com/beatles-meet-bob-dylan.html ) e algum tempo depois, deram o salto de qualidade que faz deles a maior banda de todos os tempos.

Logo depois do encontro, lançaram o “Beatles for Sale”, depois o “Help”, mas daí veio o “Rubber Soul”, pouco mais de um ano depois do Bob lhes falar do poder da letra de música. E os Beatles transformaram a música para sempre em algo que tem letra como essência e instrumental como alma. Lennon foi o que melhor aprendeu a lição e não só escreveu o melhor de si na carreira solo como viveu de acordo com o poder de transformar que suas palavras tinham.

Daí se estabelece o Norwegian principle: qualquer banda que se diga ser “A melhor de todos os tempos” deve provar que tem uma música no mesmo nível de Norwegian Wood. Se tiver, tem que mostrar que no mesmo disco tem outras tão boas quanto Nowhere man ou In my life. Daí a gente começa a conversar sobre ela ser boa mesmo.

Por que o assunto? Por que repentinamente discute-se demais a péssima capacidade de criar letras interessantes da música popular de hoje. Esqueceu-se que elas precisavam dizer algo, não só diferenciar uma música da outra. Sem ter o que dizer, são todas iguais.

Um dia, a era em que as rádios tocavam letras como as de Cazuza, Renato Russo e Lobão vai voltar. Pois ninguém vai saber falar se não acontecer logo!