15.12.10

Hatari!

'Hatari' quer dizer perigo em Swahili.
E é o nome de um dos filmes icônicos da minha infância. Estrelado por John Wayne e a belíssima Elsa Martinelli, conta a história de um caçador que não caçava para matar, mas para abastecer zoológicos e circos do mundo com animais da savana africana.

Isso me fez inventar uma série de personagens, junto com meu irmão, sobre caçadores que abasteciam um zoológico do fantástico, que era dirigido pela Cuca e duas sobrinhas dela, ahahahah. E claro, junto a dezenas de outros filmes e documentários na TV Cultura, colocou a África e suas savanas no meu imaginário para sempre.



Olha o passo do elefantinho...

E saí de Cape town para fazer aquilo que qualquer mortal em sã consciência deve fazer se pisa na África: um safári. Safári hoje em dia significa uma expedição de visualização e fotografia, andando para cima e para baixo por parques delimitados onde os animais valem mais vivos do que mortos.

Safári antigamente era um jeito de todo europeu com pênis pequeno matar tudo que aparecesse pela frente para aumentar sua autoconsideração como macho. Como se fosse justo um homem com dez guias e carregadores nativos armado de um rifle do tamanho de um canhão atirar de longe em um bicho qualquer.

"Ah, mas e como você chegou lá?"
Tá, em resumo: peguei um avião da Cidade do cabo pra Johannesburgo, passei a noite em uma pousada sem graça de um casal de chapados a lá hippies muito simpáticos que deixavam ela nas mãos de um fóssil da época dos bôeres que se mostrou a pior pessoa que conheci em todo meu tempo lá. Além de certamente ter lutado na guerra dos holandeses contra os ingleses no século XIX, ele ainda espelhava o ar de conflito latente constante que há na cidade. Johannesburgo é um pesadelo em comparação com a Cidade do Cabo.

E o povo da empresa de turismo me pegou na pousada e me levou pro Kruger park para meu safári. Tudo lindo, até que descobri que o grupo na van ia fazer outro tipo de safári, e que o meu, pacote "adventure", não tinha mais ninguém. Fiquei sozinho durante todos os dias com o guia, Israel, uma figura que falava com um sotaque zulu absurdo mas tinha olhos que encontravam qualquer coisa que respirasse na mata.



O safári moderno trouxe do antigo o conceito dos "big five", os cinco animais mais nobres para serem caçados (hoje, vistos/fotografados): O leão, o elefante, o búfalo, o leopardo e o rinoceronte. Claro, tem os cinco de Tudo nos livretos turísticos: aves, árvores, filhotes, lugares, insetos...

E lá fomos nós. Um safári é andar num carro aberto procurando bicho. Só isso, mas meu pacote incluía dormir nos campings ultraorganizados dentro do parque, um passeio noturno e um jantar típico no final (O Kruger é um dos maiores parques da África, um dos mais famosos e mais organizados).

Logo no primeiro dia, vimos 4 dos 5 grandes. E não é difícil, embora leões quase nunca fiquem perto das estradas (eles não tem medo dos carros. Eles procuram lugares com sombra durante o dia). Gnus foram mais difíceis de encontrar. E logo de cara, ouvi que "man, leopards are very rare to find with just three days driving through the park". Mesmo na época em que fui, quando ainda está seco e as árvores estão com pouquíssimas folhas.



O mais fácil de achar eram elefantes. Por onde passa uma manda de elefantes fica como se passasse uma manada de elefantes por ali. Sem elefantes, não tem savana. Sem savana, nada de bichos grandes para todo lado. É por não ter nada equivalente a elefantes que nenhum lugar do mundo tem uma megafauna tão rica quanto a África.

Vou resumir tudo em uma coisa: foi um êxtase místico. É absurdo, a melhor coisa que eu já fiz por mim mesmo. Fiquei com medo das hienas rondando os campings, demorei para entender por que todo mundo no safári noturno gritou "Cobra" ao invés de "Snake" (por que "Cobra" em inglês significa Naja!), vi o bicho que eu mais ansiava quatro vezes (Rinocerontes são lindos. São fantásticos. São majestosos. São os animais mais ameaçados pela caça ilegal).



E no último dia, depois que já havíamos passado pela recepção do parque e estávamos a uns 500 metros do portão de saída, o guia gritou: Leopardo! E lá estava o mais esquivo dos cinco grandes, o felino de maior distribuição geográfica do mundo.

E depois de tudo isso, a realidade bateu forte na cara. O jantar típico da empresa de safári foi mais pobre que marmita de bóia fria. A volta do parque foi um inferno por causa do motorista mau humorado da van, o africâner fóssil quase me fez perder o vôo, e cheguei em São Paulo com aquela chuva típica que faz o trânsito típico das piadas sobre a cidade.



Mas quer saber, valeu a pena cada segundo. Dizem que quando você sai da cidade do Cabo e ela está chorando nuvens, você vai voltar para lá. Isso aconteceu. E quando saí do Kruger, começava a primeira chuva da temporada, trazendo o ciclo de verde de volta para a savana.

I bless the rains down in Africa...

9.12.10

Bye, Cape!

Cape town é um dos lugares mais bonitos do mundo e eu não preciso ir para o mundo todo para afirmar isso. Minha certeza se deve ao fato de que há tanta coisa para se ver, provar, descobrir e experimentar em um raio de duas horas do centro da cidade que é impossível que isso se repita em muitos lugares do mundo.


Pôr do Sol no topo da montanha. Abaixo está a praia mais famosa do país, Camps bay, que não chega aos pés de qualquer praia regular de Floripa ou do Espírito santo.
Mas você deve considerar que eu sou biólogo, admiro manifestações culturais, adoro vinho e me meto em qualquer roubada que garanta alguma diversão bizarra fora dos padrões. E sou contra viagens onde comprar e fazer pose sejam mais importantes do que se jogar no barro para ver uma pedra esquisita.

Então foi com imensa dor que chegou minha última semana na cidade do Cabo. O curso? Ah, i´d love to enjoy it once more, someday. And I´ve made fantastic friends from all over the world. Rasgação de seda à parte, é importante lembrar que há basicamente dois tipos de cursos no estilo: escolas pequenas para intensivos sérios, e escolas imensas onde a sociabilização é o fator principal. Estas últimas são mais adequadas para quem tem muito tempo e se dispõe a ter coragem pra falar "não" o tempo todos para os pentelhos que falam a sua língua.

Assim, eu tinha pouco tempo e fui pela primeira opção. E descobriq eu se fosse na segunda provavelmente arrumaria inimigos de tantos "Não, eu não quero falar o maldito português aqui, seu pivete filho de papai cretino" que eu falaria.

Na última semana, teve de tudo: o Two Oceans aquarium (simples, de um bom gosto incrível e ambientalmente riquíssimo), a Montanha da Mesa (símbolo da cidade e que deve ser conhecido logo na primeira hora em que se está na cidade, teria me dado outra perspectiva de tudo), V&A Waterfront, almoço típico na escola, churrasco-balada surtado na casa da professora maluca, passeios pelo centro da cidade, compras e mais compras de souvenires.


Elas enfim apareceram no porto!

No final das contas, o aprendizado superou as expectativas e as amizades, que nem eram esperadas, foram um passo importantíssimo. Agora, o mais estranho foi o número de pessoas que conheci que queriam imigrar para lá, meio que iludidas com a organização da cidade e esquecendo de que isso não é sinônimo de crescimento econômico ou algo que o valha.

Uma cidade onde não se vê tanto lixo no chão impressiona, mas só cego não percebe que não se pode andar no centro às seis da tarde com segurança e a um quilômetro dele estão favelas onde moram uns 3/5 da cidade e onde as taxas de HIV positivo são absurdas e a miséria coloca o sertão nordestino no chinelo.

Impossível condensar tudo, mas prometo fazer um guia "África do Sul em 50 dicas" ou algo do tipo. Vão ser mais do que 50, é certo.

20.11.10

Jaws!

Já estou de volta ao Brasil há um mês, e desistira de postar coisas enquanto estava lá na África do Sul por conta da terrível conexão das lan-houses de lá.

Mas para terminar o show, claro que pelo menos mais duas postagens precisam ser feitas além dessa.



Bom, meus fins de semana eram extremamente importantes pois permitiam fazer as grandes coisas. Na semana, com aula o dia inteiro, não sobrava tempo para nada. No FDS entre 24 e 26 foi algo a mais, quando veio um feriado! E caiu em uma sexta feira, olha que maravilha. O feriado, Heritage day, é algo equivalente ao dia de ação de graças americano no espírito, mas de significado único: é o dia de celebrar as heranças culturais, naturais e espirituais da Terra deles, e é apelidado carinhosamente de "Braai day". Braai, no linguajar sul-africano, é churrasco!

E no Braai day, uma das professoras levou 4 diletos alunos para passear pelas vinícolas!

As vinícolas sul-africanas tem MUITO a ensinar para a pobre região dos vinhedos gaúchos. Todas são preparadas para receber turistas por um preço justo, com atendimento de primeira e elegância na medida certa.

E muitas destacam-se pela responsabilidade além da qualidade dos vinhos. A primeira que visitamos, Spiers (guardem esse nome, e tomem-no quando puderem) sustenta um projeto de reabilitação de aves de rapina e outro de recuperação de guepardos!

Dá pra imaginar que eu não liguei para os vinhos...

Toda a região vinícola de Stellenbosch deve sustentar metade do país com suas exportações de vinhos, seu turismo que atrai gente do mundo todo graças a eles e a suas paisagens fantásticas e seu comércio de alta classe consistente.

Mas isso não foi o principal do FDS. No dia seguinte, fui ver tubarões brancos em Gaansbai, a meca do grande branco.
Há uma imensa polêmica acerca dos mergulhos com tubarões brancos. Uma de minhas professoras insistia para que eu não fizesse o mergulho de forma alguma pois a atividade fazia com que os tubarões supostamente relacionassem a presença humana com comida (a isca de caldo de peixe deve atrair tubarões de todo o hemisfério para o barco) e isso estaria aumentando o número de ataques a humanos no litoral. Não são raros os casos de ataques ali.

Por outro lado, o mergulho faz com que cidades inteiras ganhem sustento, preservem seus mares e tornam o tubarão branco, um dos peixes predadores mais ameaçados do mundo, em algo mais valioso vivo do que morto. E eu fui!



E eu fiquei no cantinho da gaiola aí em cima...

Apareceram três tubarões no mergulho. A primeira, uma fêmea de uns 3,5 metros, fez com que quase um terço de quem estava no barco desistisse de entrar na gaiola. Apesar da água geladíssima (por volta de 11ºC) ficar ali na gaiola é mais seguro do que saltar de bungee jump, de paraquedas ou quase todos os esportes radicais que você já ouviu falar.

Mas quando você, ser terrestre incompetente para nadar afundado ao lado de um predador que está há uns 300 milhões de anos se tornando o melhor naquilo que faz, se toca da situação... meu caro, frio da água nem se compara com o da sua espinha.

Um segundo tubarão, de talvez dois metros, mal ficou por perto, saiu de perto antes de topar com a grande fêmea. E o terceiro, um nervosinho de uns 2,5 metros e que aparece na foto, deu a maior parte das boas fotos de todos no barco. Mordeu a gaiola para experimentar, nadou rente ao barco... enfim, deu show. A agilidade, imponência e graça dele faz com que imediatamente esqueçamos do monstro desajeitado e feio retratado por Spielberg no filme "Jaws" (que significa mandíbula, e não tubarão. Grande filme, mas nada mais distante da realidade que há no bicho).

Nem tudo é preocupação em um passeio destes. Ao fim, após um êxtase que superou a visualização das baleias em muito, voltamos para a base sem nada querendo sair do estômago e vimos o DVD que a companhia gravou conosco no barco (lógico que eu trouxe uma cópia). Um dia perfeito, antecedido de outro. E quase me fez esquecer que, a esta altura, eu já estava quase no fim do meu tempo na Cidade do Cabo.

25.9.10

O bem e o mal



Semana passada tive a melhor e a pior experiência até agora aqui na África do Sul.

Fui eu, a Juliene (a tia alemã surtada) e a Mirian (a suiça gnomo) junto a turistas do mundo todo (mas essencialmente da europa) e um guia (nascido em uma das favelas da época do Apartheid e que falava mais do que o homem da cobra. Me esclareceu muito sobre o sentimento atual da sociedade) para ver baleias em Hermanus, uma cidade a 2 horas da Cidade do Cabo. Na Baía de Hermanus, de agosto a outubro, baleias francas de todo o hemisfério sul se encontram para acasalar e bater altos papos sobre como foi o ano. E lá fui eu ver baleias pela primeira vez na vida.

Hermanus é uma cidade muito bonita, com típica cara de balneário caro, e também uma armadilha para turistas. E ela sim é uma legítima representante do atual estado das coisas na África do Sul. Faz parte da região politicamente controlada pelos partidos brancos, isto é, pela direita. Sim, a África do Sul vive um pesadelo político onde os brancos se confundem com a direita e os negros com a esquerda.

E entrei no barco, automaticamente fui consagrado o brasileiro manja-tudo-de-futebol pelo capitão histérico (ele gritava como louco cada vez que se via uma baleia). O estômago reclamou mas cheguei la.

E alguns minutos depois de acharmos a primeira baleia e desligar-se o motor do barco (ele só pode chegar a 300 metros delas), ela veio para nos ver!

Logo, outras 3 apareceram (!!!!!). Talvez uma femea e 3 pretendentes. Nao posso nem descrever o tamanho da minha alegria, mas te garanto, o barco era pequeno pra ela. Mas as baleias... maiores. Maiores mesmo!

Elas ficaram ao nosso redor mais ou menos 60 minutos. Ora nos observavam interessadas, ora sumiam pra fazer outra coisa. Mas se despediram com um aceno coletivo (não, eu não estou brincando. Todas elas mergulharam deitando de lado e levantando as nadadeiras) e sumiram. E a volta sim foi um inferno pro estômago. Pessoas, sempre tenham um chiclete à mão. Ajuda a segurar a barra!

E de volta a praia, deixados à solta pela avenida que parece um shopping a céu aberto na beira-mar, lá fui eu ver na feirinha chique uma banca onde vendiam fósseis de dentes de tubarão e amonites (a venda desses fósseis aqui é comum). E pronto, meu dia de êxtase místico foi pro saco.

Ja estava com 2 dentes e uma amonite na mão quando, claro, comecei a barganhar com a mulher. Ser turista e falar mal a língua tem suas vantagens e a conversa foi fácil. Ela me deu uns 15% de desconto e, pra completar, acrescentou algo mais ou menos como "Sabe, nao posso dar mais desconto como fazem os pretos aí do lado, que acabam com os negócios fazendo isso. Esse povo não sabe manter negócio como gente".

Eu demorei uns trinta segundos para digerir o que ela havia dito, não por que não entendi, mas por que não tinha cabimento um ser humano dizer uma coisa daquelas! PÔ! Eu sou brasileiro, tem racismo aqui sim, mas nada que eu já tenha ouvido na minha vida chegou perto do que aquela mulher disse.

Eu dei as costas pra ela, pegando meu dinheiro da mão dela e deixando lá as coisas, e fui comprar algo na banquinha do lado. A dos pretos. A que me fez exatamente o mesmo desconto.

Pois é. Do céu ao inferno em meia hora.

De lá, fui almoçar num restaurante à cubana (como eu disse, tem típico tudo, menos típico africano ali) e aproveitei o final da excursão para fotografar obcecadamente um Hirax que estava fazendo a toalete diária nas rochas. O Hirax é um parente distante do elefante, embora pareça-se com um coelho sem orelhas compridas. Super comuns na África do Sul, com suas montanhas de rocha nua perfeitas para eles.

O Hirax está para o elefante como a humanidade está para as baleias. Muito, mas muito atrás na evolução.

12.9.10

Mandela day




E hoje eu fui visitar Robben island (algo como "ilha dos ladrões" em Afrikaner), a mais famosa prisão política da história recente. E foi lá que Mandela passou a maior parte do seu tempo preso pelo regime político-terrorista chamado Apartheid.

A experiência é poderosa. Claro, como tudo, Mandela virou um grande negócio, e com as visitas não é diferente. Um lindo catamarã leva, acho, umas duzentas pessoas em cada uma das 4 viagens diárias, e sempre cheio nos fins de semana. Há montes de quinquilharias e lembrancinhas (quase comprei um Desmond Tutu de pano) Claro, parte do chique porto chamado Waterfront, o equivalente daqui ao Corcovado e suas turistices.



Cinismo a parte, falei com um grupinho, descobri que escolas pedem a seus alunos que façam trabalhos sobre a visita (o grupo tinha estudantes de toda a África do Sul). Uma outra guria falou sobre o quão diferente Capetown é do resto do país, e que se tornou uma espécie de modelo para o restante.

Confirmando minha impressão de que julgar a África do Sul por Cape Town é mais ou menos a mesma coisa que julgar o Brasil por Florianópolis ou Curitiba.

E a ilha: preservada pra caramba, mas dessa vez, o que me chamou mesmo a atenção foi o fator humano. Guiado pelo genial Zozo, um ex-preso político, e possível sentir o horror daquilo tudo. Mas aparentemente as prisões políticas do Brasil eram piores. Zozo era preso político comum, mas conhecia, gracas aos momentos de trabalho forçados na pedreira, todos os grandes líderes, que eram mantidos em uma ala separada apenas com solitárias.

A pedreira, é dito, foi o primeiro parlamento democrático verdadeiro da África do Sul. Robben Island ficou conhecida como "a universidade", pois ali os presos de diferentes organizações trocavam idéias, ensinavam os mais jovens, montavam a nação livre em suas cabeça, planejavam a futura constituição.

Detalhe curioso: no Brasil, quando fizeram uma prisão em uma ilha e enfiaram presos políticos nela, misturaram presos comuns e disso nasceram organizações criminosas no Brasil. Lá, eles se preveniram. Robben Island só tinha preso político!

O tempo limitado da lan house nao permite entrar em detalhes... mas creiam, valeu muito a pena. Vamos convir, custou o equivalente a uns 40 reais. Vale muito mais do que isso!

9.9.10

Little diferences




A Cidade do Cabo e região é mais ou menos como a parte sudeste do Brasil: mais moderna e aberta do que o resto do país, sofre com certas regionalidades e preconceitos de primo rico. Camps bay, por exemplo, a vila Olímpia da cidade, e repleta de descendentes de ingleses que nao suportam "aqueles outros pobres", os negros e os descendentes de Holandeses.

A impressão é a seguinte: os vilões de filme, aqueles racistões que no final da aventura explodem, são em geral descendentes de holandeses. Os descendentes de ingleses não ligam tanto pra sua raça, contanto que você não seja pobre (isso é muito paulista de classe mérdia da parte deles). Ainda bem que isso não é uma regra, e sim as exceções que marcam o estereótipo. Dado que a Cidade do Cabo é predominantemente inglesa, aqui tem um problema de raça menor do que no resto do país.

As diferentes etnias negras recuperam aos poucos seus traços culturais diferenciados, após anos tratados como iguais. Em geral, lidam com o problema como "nós vivendo com eles", embora existam importantes líderes que tratem o problema pelo péssimo ângulo do "eles invadiram nossa terra". Os Zulus e os Xhosa (etnia da qual descende Mandela) aparentam lidar melhor com a questão de sua própria cultura aqui na região.

Nao obstante essa bagunça absolutamente diversa da nossa brasilidade, existe uma série de diferenças corriqueiras engraçadas entre os mundos. Estou em um bairro bem legal, mas todo o comércio é de bairro, nada como as grandes lojas de Santana ou megamercados. A frota de carros tem uma variedade que os brasileiros, viciados na antiga autolatina, levaremos anos para alcancar. A comida parece anos-luz atras da nossa. Nada de comida por quilo ou pequenos e bons restaurantes. Ou é fast-food, ou é chique. E quase tudo é "típico": grego, japonês, coreano, português, hindu... mas nada sul-africano!
Mas tem um crocoburguer que estou ansioso pra ir comer!

7.9.10

A aula

Vou sofrer menos do que pensava para entender, mas mais para me fazer entender.

As aulas obrigam a falar e a mente hoje doeu menos do que ontem para criar frase em inglês, eh eh. Segundo a professora Linda, a inglesa, depois de cada aula eu tenho o seguinte "out-homework": andar pela orla para espairecer e dar tempo á mente para absorver a aula sem doer. E não é que funciona?

Mas claro que o mundo nos avisa, e ao fim de quatro horas de aula ontem, durante o almoço, um Íbis verde escuro passou do mau lado forrageando numa boa pela grama.
Para quem não lembra, o Deus da escrita, da comunicação e da sabedoria no Egito, Toth, tem a cabeça de um Íbis.

Dormi mais tranquilo om isso!

E feliz dia da independência! Estou em um país que está a menos de vinte anos em uma situacao normal, mas aqui as pessoas param para você atravessar a rua, não jogam papel no chão e sabem que felino grande vivo vale mais do que felino grande morto.

Tem algo de errado na forma como o Brasil se tornou uma democracia e ganhou sua independência. Nós não consideramo-nos donos do nosso país. Aquele espírito de ser apenas um visitante nos faz tratar nossa abençoadíssima Terra como apenas um quarto de motel fuleiro.

Cidadania é artigo de série aqui, e isso me dá ganas de trucidar cada cretino que joga papelzinho no chão.

5.9.10

Primeiras impressoes

Ok, quando eu voltar pra casa a primeira coisa a fazer sera colocar acentos nisso tudo, ja que os teclados daqui nao tem esse luxo.

Estou a doze horas em Capetown. por enquanto me parece sossegada, mas ja notei que nao se pode ficar de bobeira, mais ou menos como andar pelo centro d de São Paulo. O lugar é bonito pacas, mas ainda nao me inspirei para escrever de uma forma mais critica e/ou poética.

Por enquanto, o que me chamou a atencao foi: 1 - o Mandela é cultuado aqui. Mesmo! Eu nao fazia ideia de que a coisa era tão forte. 2 - as pessoas estao amando futebol e a copa do mundo foi incrivel para todos, mas os turistas brasileiros tiveram má fama (atrás dos franceses e dos argentinos, kkkkk) 3 - até que me viro bem em inglês 4 - as tomadas são bizarras, com um padrão exclusivo daqui 5 - tem algo de muito americano do interior no jeito das coisas aqui, aquele lance meio brega, e meu café da manhã foi de ovos com torrada, café solúvel e creme de amendoim 6 - tem gaivotas gritando o tempo todo 7 - nas pedras da praia nao tem caranguejo!!!! 8 - negros tem mais sotaque africano do que brancos, e este aumenta com a idade. O jeito de falar daqui dos negros mais jovens e dos brancos parece o americano, mas os brancos idosos que vi falam Africaner. Os negros sao mais simpáticos do que os brancos, ou pelo menos mais abertos a conversar.

Vamos ver se consigo atualizar isso aqui com alguma frequência. E agora, preciso arrumar um adaptador e um recarregador de pilhas 220!

PS: o Kalahari visto do avião foi incrível.
`

1.9.10

Hephaestus!




Hefesto é o deus do fogo, do trabalho, dos ferreiros. E talvez o menos comentado de todos os doze grandes Deuses Olímpicos. Dia 23 de agosto foi o dia dedicado a Ele, e foi estranha a forma como este Deus se imiscuiu em tudo aquilo que fiz este mês.

Tudo surgiu quando eu pensava nos ciclopes. Havia acabado de ler pela enésima vez a descrição resumida das aventuras de Odisseu (também e mais popularmente chamado pelo nome latino Ulisses)onde ele cega o monstro que prendeu e aos poucos devorava sua tripulação. O ciclope Polifemo é apenas um de muitos de sua raça. A maioria trabalhava nas fornalhas sob os vulcões do mundo, comandados por um Deus.

Na fornalha que Hefesto fez com o monte Vesúvio (ou o Etna, conforme a versão) criou as mais fantásticas armas já vistas. O escudo e os raios de Zeus, o tridente de Poseidon, a armadura de Héracles e praticamente todos os instrumentos de poder dos Deuses. Como símbolo do esforço, Hefesto mostra seu valor através de sua obra mesmo tendo sofrido preconceito e humilhações de outros Deuses. Hefesto é descrito como feio e coxo, em um lugar onde todos são a perfeição.

Pouco a pouco, Hefesto fez cada um dos Deuses lhe deverem favores. Se vingou quando sua esposa Afrodite o traiu com Ares, Deus da guerra, e acabou se unindo a uma das três graças.

E embora Hefesto pouco apareça na maioria dos mitos, é por ser ele o único Deus que trabalha com uma equipe, que cria obras como as fantásticas criadas de metal que serviam em seu palácio de bronze e as já citadas armas e proteções de Deuses e SemiDeuses. Hefesto é o mais próximo dos humanos, e unir o poder sobre o fogo, a criatividade, a ciência e o trabalho é mais humano ainda.

Ares, quando consegue os favores de Afrodite, representa o garotão que está dando sopa quando o marido está afogando-se em trabalho? Ou Hefesto é aquele que trabalha demais por quem não o merece? Afrodite é uma mulher abandonada ou traidora?

Hefesto revela as mais poderosas criações humanas, o poder da persistência, do fogo que brota ao nosso redor e pode ser convertido em nossa ferramenta para galgar o Olimpo de nossas alegrias.

Ele é, sim, o Deus do fogo, do trabalho (também em equipe), do esforço. Ele nos traz a luz quando bate com seu martelo na forja e cria os raios. De sua sabedoria, ciência e força dependem os demais Deuses para operarem no plano dos mortais. Hefesto é o Deus que se manifestou para a criação da era da máquina, que trouxe o computador e as naves espaciais para o homem. Ao lado de Prometeu, um Titã, é o patrono daquilo que faz dos homens os senhores de si mesmos.

Basta que eles aprendam também que o trabalho é contrário à guerra.

5.8.10

Onde os fracos não tem vez (2º parte).

O título do filme oscarizado é melhor do que o final do mesmo (é um PUTA filme... até seus dez minutos finais), e de novo serve como título de uma postagem anti-fraqueza.

Vai estrear o mais-do-que-esperado filme novo de Sly (para quem não esteve no planeta cinema recentemente, Sly = Silvester Stallone). O seu longa "Os mercenários" reúne a nata da pancadaria (com direito a participações especiais de Schwarzenegger e Bruce Willis) para fazer um novo filme dos anos 80: Bando de durões com armas gigantes lutando contra um país emulado de Cuba.

É, essa é a trama. Uns mil filmes usaram-na naqueles longínquos tempos de guerra fria. É de espantar que os americanos ainda tem medo dos ditadores da América Latina, agora repaginados como Chávez e Zelaya. Estamos em uma nova fase de horror ao comunismo ou é impressão minha?

Pancadarias cinematográficas a parte (E o comentário mercadologicamente infeliz de Stallone sobre o Brasil, onde filmou, que se dane. Provavelmente alguém deve ter oferecido a ele um sagui por preço de banana como qualquer ambientalista sabe que é comum acontecer pelo país) o filme destila todos os preconceitos machistas, americanóides e militares já zoados tantas vezes, e certamente o filme não deve se levar a sério. É de bom tom lembrar que Stallone não é nenhum idiota (ele já foi indicado ao Oscar bem mais do que você supõe, e suas escolhas por um tipo de filme mais raso não tem nada de ingênuo. Pelo contrário, serviam a um objetivo político bem claro). Deve ser divertido, como sempre foram os filmes de pancadaria da época.

Há uma nova onda classemédia/paga-pau-neoliberal/preconceituosa contra a esquerda no mundo. Desde a crise econômica mundial, que abalou a idéia de que o mundo ia bem, obrigado do jeito que estava, e do sucesso de países governados de modo não-alinhado com a idéia de capitalismo modelo americano (Os países do BRIC em especial)que ficou cada vez mais evidente um movimento de desqualificação dos princípios que escapem ao conservadorismo político à americana.

Isso se reflete em gente que nunca pôs os pés em uma favela e acha que devemos explodir todas. Que acha que fome, desemprego e maus-tratos a crianças e animais acontece por que "aqueles outros, os pobres" são criaturas inferiores. São aquelas pessoas que querem criar leis que proíbam mendigos de ter cachorro, acabem com iniciativas de tirar gente da miséria absoluta às custas de impostos e que não votam em partidos verdes por que acham que verde e vermelho são cores muito parecidas entre si.

Isso só reflete o básico: não existe mais esquerda ou direita. O principal partido da oposição ganhou votantes de direita tendo em seu próprio nome princípios de esquerda, mas rodou e rodou para cair no colo do partido que foi a situação na ditadura dos anos 70. O partido da situação ignora que seu nome deveria incluir trabalhadores que pagam imposto demais por serviços de menos e que seu maior aliado já nada mais tem da oposição que lutou por uma nova constituição e por diretas já nos 80.

Stallone veio ao Brasil, explodiu tudo em uma ficção, disse que aqui oferecem um macaco e sorriem quando você faz isso e vai ganhar uma grana com as bilheterias daqui.

Agora, nós devemos questionar por que no país dele terroristas explodem tudo de verdade, fizeram com que seus habitantes votassem em um homem das cavernas a mando de empresas privadas por dois mandatos consecutivos (e cujo sucessor está sendo crucificado por lutar contra estas mesmas empresas, vide o vazamento de petróleo no golfo do México) e mesmo com tudo isso ainda mandam a economia mundial pro inferno mesmo sem gastarem um tostão ajudando o próprio povo a terem saúde gratuita ou promovendo a recuperação financeira de quem precisa, mas torrando milhões para salvar bancos, montadoras e seguradoras.

Quer saber? Se fosse o Chuck Norris, ele tinha sozinho destruído a ditadura, ganhado a mocinha, recriado a ordem econômica mundial, oferecido saúde gratuita e comida para o mundo todo, acabado com a devastação florestal e ainda dado um pau em um asteróide gigante cheio de aliens que estava em rota de colisão com a Terra.

26.6.10

Africa



Toto

I hear the drums echoing tonight
But she hears only whispers of some quiet conversation
She's coming in 12:30 flight
The moonlit wings reflect the stars that guide me towards salvation
I stopped an old man along the way
Hoping to find some long forgotten words or ancient melodies
He turned to me as if to say, "Hurry boy, it's waiting there for you"
(Chorus)
It's gonna take a lot to drag me away from you
There's nothing that a hundred men or more could ever do
I bless the rains down in Africa
Gonna take some time to do the things we never had
The wild dogs cry out in the night
As they grow restless longing for some solitary company
I know that I must do what's right
Sure as Kilimanjaro rises like Olympus above the Serengeti
I seek to cure what's deep inside, frightened of this thing that I've become
(Chorus)
Hurry boy, she's waiting there for you
It's gonna take a lot to drag me away from you
There's nothing that a hundred men or more could ever do
I bless the rains down in Africa, I bless the rains down in Africa
I bless the rains down in Africa, I bless the rains down in Africa
I bless the rains down in Africa
Gonna take some time to do the things we never had

27.5.10

Lembrar é viver.



Anteontem, perdi duas horas da minha vida assistindo a regravação de “Fúria de titãs”, mais um filme caríssimo cujo custo poderia ter alimentado a Somália por alguns dias e que não será lembrado nem mesmo no mês que vem.

Para quem esteve fora da Terra nos últimos decênios, “Fúria de Titãs” é um clássico da sessão da tarde que mostra, com alguma liberdade poética para a mitologia, a saga de Perseu para conseguir a mais perigosa arma já imaginada, a cabeça da Medusa, a fim de evitar que a cidade de sua amada Andrômeda seja destruída pelo Kraken (no mito, é Cetus. Kraken é um nome de monstro do mar “emprestado” da mitologia viking. Imagino que como a palavra “Cetus” originou a moderna alcunha científica “Cetáceo” para o grupo das baleias e golfinhos ficava muito antipático chamar um monstro por esse nome hoje em dia).

Perseu é um herói mítico perfeito no filme. Decidido, bonitão, ético, inteligente, consciente de sua responsabilidade e corajoso até o último fio de cabelo. O mito trata do desrespeito dos homens para com os Deuses, retratados com emoções e motivações bem humanas. Um elenco divino encabeçado por verdadeiras divindades do cinema: Zeus é interpretado por ninguém menos do que Sir Laurence Olivier. Hera, pela belíssima senhora do teatro Claire Bloom. Tétis, pela genial Maggie Smith e Afrodite por... Ursula Andress! Aos 44 anos, Ursula ainda era a atriz mais próxima de um ideal Afroditeano de beleza que vocês podem imaginar.

O centro do filme é o fato de que um filho cruel e mimado (Calibos) pede a sua Mãe-Deusa que o vingue após ter sido humilhado por Perseu. Todo o conflito se desenrola disso. A cidade onde vive Andrômeda cairá pois Perseu, sendo protegido de Zeus, não pode ser diretamente atacado. Tem seus pepinos, como a coruja de metal encaixada acréscimo fofo, a presença do Pégaso vindo de outra lenda ou o visual esquisito do Kraken, mas em compensação tem detalhes maravilhosos como a homenagem ao teatro grego delicada e poderosamente feita pelo personagem de Burgess Meredith, o filósofo que ensina Perseu a pensar.

O filme atual, que ainda por cima foi feito de forma convencional e depois foi transformado para a moda do 3D com resultados horríveis, muda toda a questão mítica subjacente. Os deuses (com minúscula) dependem das orações dos mortais para terem poder (o conceito de egrégora é manchado aqui com tintas primárias). Um deus invejoso, Hades, do poder de seu irmão Zeus manipula tudo para que os mortais temam a ele e assim ele fique poderoso o bastante para dominar o Olimpo. Detalhe? O diretor do filme se declarou fã do desenho “Cavaleiros do Zodíaco”! Olha só que credencial ele tem para falar de mitologia grega. Os deuses, de fato, parecem estar sempre vestidos com uma armadura comprada numa lojinha de 1,99. Nem mesmo as armaduras dos cavaleiros eram tão pouco imponentes.

Hades virou vilão depois dos tais cavaleiros, do famigerado desenho “Hércules” que a Disney cometeu enquanto afundava e por que a cabeça cristã-maniqueísta quer que o Deus das profundezas e do reino dos mortos seja um equivalente ao Diabo.
O problema é que as pessoas não entendem que a divisão do reino dos céus, dos mares e do subsolo entre Zeus, Poseidon e Hades nunca foi ruim para nenhum deles, e que ser o Deus dos mortos não é uma desonra, nem Hades é um Deus adepto de abuso de poder divino (quesito no qual Zeus extrapola inúmeras vezes e nem por isso é demonizado). Aliás, Hades é um Deus apaixonado e fiel ao seu amor por Perséfone, como prova o fato de termos invernos todos os anos.

O que fica no filme? A velha babaquice americana contra a opressão dos poderosos, da livre-iniciativa, do poder do indivíduo e por aí vai. Aqui, os mimados são recompensados! Perseu é um macaco treinado (o Sam Worthington vai ter que ralar para apagar esse papel do currículo) arrastado pelas situações. As cenas não tem conexão. Os ingredientes colocados lá só para dar alguma cor no filme não funcionam (o que são aqueles soldados xerocados de “300 de Esparta”, a presença de Io num mito que não tem nada a ver com ela, os tais Djins caídos de pára-quedas da mitologia árabe e que não fazem nada ou a dupla de caçadores?).

E o pior: o monstro. Metade do filme é gasto para criar a expectativa de que o Kraken é a encarnação da destruição. Quando ele vai surgir, são horas até ele aparecer por inteiro. Se o filme antigo causa risos hoje com sua técnica de stop-motion (que ainda assim fez uma Medusa realmente apavorante e não aquela lambisgóia modernosa) pelo menos eles eram honestos com o monstro. O atual vai surgindo, primeiro tentáculos, depois pinças, cascas e então...! Uma tartaruga gigante dentuça! Eu quase morri de rir. O desenhista de produção devia ser enforcado por quem o pagou.

Moral da história. Peguem o pirata para ver e morram de rir. Baixem pela internet, mas nunca, em hipótese alguma, dêem algum lucro pra quem fez aquele filme. E vão assistir o antigo, que acaba de sair em DVD em uma nova edição caprichada, que vocês devem comprar legalmente na sua loja preferida. Esse merece seu dinheiro.

27.4.10

Quem fica e quem vai.



Li recentemente duas coisas que são, de certo modo, opostas. Ambas tratam da velhice, da consciência da morte e da responsabilidade ante o mundo.
"Rip van Winkle" de Washington Irving, e "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde.
Escritas em lados opostos do Atlântico, a primeira fala do momento de revelação com as mudanças logo após a revolução americana, e a segunda, da melancólica dor da mortalidade de um império que começou a desmoronar com, justamente, a revolução americana.

Van Winkle, para quem não sabe, vai um belo dia atirar em alguns esquilos (!) para desanuviar a cabeça das responsabilidades que sua esposa lhe impõe. Embora ela seja tratada como uma megera, hoje damos-lhe plena razão por desejar um marido que dedique tempo a sua família e ganha-pão como dedica-se a ajudar os outros. Sim, Van Winkle é bom, mas só para os outros.
Na montanha, topa com seres estranhos que o fazem beber até cair no sono... por vinte anos! Algumas interpretações indicam que seriam espíritos protetores da floresta ou da vila (com implicações interpretativas bem diferentes para cada caso). Ao acordar, Van Winkle descobre que sua esposa morreu, alguns de seus melhores amigos morreram em uma guerra terrível (onde sua Terra se tornou independente) e ele já é avô.

Dorian Gray é um jovem dandy inglês que vende a alma para que um quadro envelheça por ele, permitindo-lhe viver jovem todos os delírios hedonistas que ele acha merecer. O retrato da rica nobreza-burguesia da Inglaterra vitoriana (diga-se, o objetivo do retrato de Dorian é ser um retrato de sua Terra) é simplesmente genial em suas agulhadas e exibição de defeitos. Não esquecendo que o próprio autor era o dandy absoluto de seu tempo.

Um império perde sua maior colônia, que se torna um império ainda maior depois de um século e meio.
Rip Van Winkle não vê a mudança chegar, e saúda o rei da Inglaterra quando acorda de seu sono mágico. Os protetores da vila salvaram um homem bom da guerra para trazer algo altruísta do passado a um novo mundo? Ou os protetores da floresta puniram um homem que negligenciava sua própria família, devolvendo-o a um mundo completamente diferente daquele onde vivia privado dos melhores anos de sua juventude?
Dorian Gray se revela um monstro criado em tetas de um império agonizante, incapaz de ver a decadência que lhe seria natural se abrisse os olhos para si mesmo. Um retrato moderno dos decadentes nobres romanos, cegos de vinho, riqueza roubada e prazeres, para o mundo bárbaro que batia na sua porta.

Situados em duas extremidades do século XIX, Van Winkle e Gray se odiariam instantâneamente caso se encontrassem. Tendo perdido a juventude, a inveja de Van Winkle acenderia o estopim, mas o menosprezo de Gray para com as pequenas coisas que fazem mais doloroso ainda para seu oponente ter perdido vinte anos de vida (perder o crescimento dos filhos, a fazenda onde trabalhava sua subsistência e os amigos de bate-papo) tornaria esse encontro algo memorável.

Um lado meu torce por Gray. Outro, que a maioria das pessoas diz apoiar quando está imersa em sua rotina de trabalho duro pós-Éden, ajudaria Van Winkle a quebrar o jovem e seu retrato. No meio disso, subsisto com alguma força de vontade a cair em qualquer um dos lados.

E no fundo, no fundo, sei que o mundo no qual Van Winkle precisa se adaptar dá certo e evolui, enquanto aquele agarrado com unhas e dentes por Gray já estava moribundo quando ele nasceu.

Agora saiam da frente do computador e vão ler um bom livro. Ou dois. Nunca se sabe quando eles vão exibir semelhanças e diferenças incríveis entre si.

17.2.10

Cantoras em ternos de 3 botões

Acabou o carnaval e para todos os lados só se falava de desfiles e suas passistas, de Paris Hilton sendo carregada bêbada, de Madonna e seu chaveiro brasileiro assistindo sambistas sérios obrigados a darem showzinho particular a ela e do clipe de Alicia Keys gravado em Salvador onde Beyoncé se vestiu de brasileira-clichê-de-cartaz-de-turismo-sexual.

Embranquecida?

E é dessa última pessoa que vou falar aqui. Sim, admito, a Beyoncé é uma cantora competente, uma dançarina exemplar, uma musa pop indiscutível e tem uma carreira sólida e acima da média da mediocridade geral. Não que isso signifique alguma coisa em um mundo onde existe Avril Lavigne ou Justin Timberlake.

A questão está toda aí. Beyoncé é, em última instância, a musa pop dos sonhos mais conservadores e caretas do mundo. Não que eu exija dela ser uma Wendy O. Williams, mas ela é comportada demais, careta demais, sem sal demais.

Quem é Wendy O. Williams? Ó destreinado no mundo do punk rock, a senhorita Williams é a vocalista que se suicidou da icônica banda Plasmatics, ex-atriz pornô, a mais nua das mulheres a pisarem para cantar em um palco e nos seus últimos anos militante dos direitos dos animais e do vegetarianismo Straight edge. Os motivos de seu suicídio são pouco claros, mas ela era o extremo oposto da atual rainha do pop. Confira: http://www.youtube.com/watch?v=Q2eynNh5xHM

Beyoncé não tem a mínima obrigação de ser politicamente correta? É completamente alienada em termos de economia e política mundial, como demonstrado no episódio recente onde ganhou para fazer um showzinho particular pago pelo bolso de milhares e milhares de súditos do ditador Muammar Gaddafi da Líbia. Igualzinho ao que Elis Regina fez quando cantou "O bêbado e o equilibrista", provocando a ira de toda uma casta de velhos militares de um governo nada democrático tupiniquim, sabia? http://www.youtube.com/watch?v=6kVBqefGcf4

Adoro técnica vocal, amo trabalho bem feito. Mas até mesmo em palco Beyoncé parece técnica demais, perfeita demais. O uso de playback poupa o artista e torna tudo mecânico, é certo. A espontaneidade de uma avalanche de gelo de um show dela a torna um maravilhoso produto plástico, idêntico ao estilo de Janis Joplin em uma de suas raras composições, "Mercedes Benz" ( http://www.youtube.com/watch?v=i-4AheUl6ls ) e sua música de "social e poética importância", em suas próprias palavras, cantada com emoção indescritível, técnica péssima e suando às bicas gritando contra o excesso de consumismo.

Não tem a mínima obrigação de ser polêmica. Seu hit absoluto, "Single ladies", tem o horrendo subtítulo "ponha um anel nela", levando-nos a um monstruoso passado recente onde mulheres só tinham algum valor após se casarem (sem contar a coreografia pobre e vergonhosa que deve fazer a coreógrafa e cantora Paula Abdul se esconder debaixo da cama). Madonna lutou para libertar a reprimida sexualidade feminina por tanto tempo para agora o pop ter uma rainha defendendo o mesmo que minhas tias-avós?

Beyoncé, ao contrário do que foi dito por aí, NÃO quebrou o pau com a empresa de cosméticos que branqueou a foto dela usada em uma propaganda pois sua cor negra não combinava com o produto e com a imagem da fábrica.
Igualzinho a Billie Holiday, a menina que se tornou a Deusa do Jazz após ter lutado por anos com uma infância miserável, uma adolescência de prostituta e uma rotina de drogas e mais drogas para se manter acordada para os shows intermináveis exigidos para manter um padrão mínimo de vida (negra, pobre e ex-prostituta não ganhava muito, apesar de sua fama). Billie arriscou toda a sua carreira cantando a canção escrita por um judeu sobre "Strange fruits" nas árvores da Louisiana (os corpos dos negros enforcados pelos brancos sem julgamento, ou mesmo motivo em muitos casos). Confira COM CUIDADO, as cenas são assustadoras: http://www.youtube.com/watch?v=lGNIX4qa38E

Em suma, Beyoncé é uma agente da norma, rebelde como uma camisa pólo, cantando em prol da caretice e da falta de ousadia para encarar um mundo cheio de velhas respostas para novos problemas. Não fala mal de ninguém, não admite erros no sonho americano ou no sistema sócio-político-econômico-emocional-ambiental do planeta.

Ambiental? É, ela usa casacos de pele. Para quem nunca viu como um casaco de pele é feito, pode perguntar a outra grande cantora, Chrissie Hynde, dos Pretenders, que até presa já foi enquanto protestava junto às maiores ONGs de defesa do ambiente.

Estamos mal de musas pop...

7.2.10

Retratai-vos.


Frazetta: músculos, sexo, monstros, mais músculos no monstro, curvas, mais músculos nas curvas, e toda a potência de um jumbo em uma só cena.

Entre os muçulmanos, existe uma lei religiosa que impede a retratação gráfica de seres humanos (em algumas alas mais radicais, não só humanos). A idéia essencial é de que a criação é exclusividade de Deus e portanto é pretensão humana achar que podemos retratar aquilo que é considerado o ápice da obra divina.


Thor, ou "como Walt Simonson retrata a ação de um Deus contra monstros".

Isso nos deu os maravilhosos afrescos, texturas, arquitetura e arabescos do mundo islâmico, mas em compensação tolheu os artistas muçulmanos de criarem as histórias em quadrinhos, os equivalentes africanos e árabes dos retratos renascentistas e muitas outras formas de representação em escultura, desenho e por aí vai.

A arte em geral é reconhecida como o poder da expressão do mundo interno da criatura senciente e auto-consciente. Dentre as artes clássicas, reconheciam-se seis artes:
1ª, a Música, 2ª a Dança, 3ª a Pintura, 4ª a Escultura, 5ª o Teatro e 6ª a Literatura. Posteriormente, o cinema se tornou a 7ª.


Carmine Infantino: o mestre da velocidade em um papel estático.

Outras artes foram sendo agregadas desde o século 19, embora só o cinema tenha desfrutado de um posto cativo na lista. Ninguém discute que a fotografia é uma arte, mas seu posto de 8ª arte é posto como algo forçado por muitos críticos (dos quais discordo), assim como outras formas expressivas típicas da modernidade. Parece aquela criança birrenta tentando ganhar um lugar na mesa dos adultos. Os quadrinhos seriam a 9ª arte, e são mesmo uma expressão única. Os Videogames (ahahahah) a 10ª e a arte digital (photoshopar capa da play-boi vale?) disputaria o 11ª posto.


Shimamoto, o mestre do PB Brasileiro. Medo!

Não se discute o papel de cada representação destas, mas abrir demais o leque além destas 11 fica difícil. O videogame é altamente discutível, diga-se de passagem, dado que não se cria videogame sem pretensão de lucro e sem todo um esquema empresarial por trás dele. A videoinstalação, audioinstalação, cinestesioinstalação não são capítulos à parte nisso tudo? A arte não é inerentemente inútil, como dizia Oscar Wilde?


O Brasil tem seus supers. Raio Negro, Capitão 7 e Velta.

Tudo isso para dizer: amo quadrinhos. A representação humana nos quadrinhos é algo que extrapola o realismo, finca as bases de uma nova forma de retrato mítico da saga do herói, do poder imensurável, do mal em sua mais monstruosa roupagem, tudo isso junto! Os quadrinhos (mais uma coisa desconhecida) nasceram no Brasil na sua forma hoje conhecida, descendentes diretos das charges do século XVIII, mas apenas após jornais americanos publicarem tiras no formato se tornaram conhecidos do grande público mundial.


Desafio-te a encontrar um rosto igual a outro em um desenho de George Perez.

Não dá para imaginar como os antigos gregos imaginavam seus heróis míticos sem pensar que de alguma forma eles tinham em suas imaginações o poder de retratação que vemos hoje nos quadrinhos. Afirma sem pestanejar que a tecnologia de efeitos especiais evoluiu por pura inveja do poder dos quadrinhos de representarem o absolutamente irreal, e não é coincidência que o lucrativíssimo ramo do cinema de super-heróis ganhou espaço quando Matrix detonou os limites do que pode ou não ser mostrado em uma tela.


Frank Miller em sua melhor história, mas antes dos delírios gráficos belíssimos de Sin City.

Portanto, senhora mãe, senhor pai, quando seus filhotes estiverem com uma revista do Wolverine nas mãos, não o censure, não o mande fazer redação. Dê para ele o "Eu sou Wolverine", de Frank Miller e Chris Claremont, e digam que se ele quer ler o velho carcaju, é com aquilo que ele deve começar. Pois daquilo lá para encarar "Shogun", Jack London e Ernest Hemingway é um pulo.

Quando seu filho perguntar o que é um morro carioca, deixe-o ler o Zé carioca do Renato Canini (abaixo). É mil vezes mais saudável do que assistir qualquer filmeco favela-gangue-pobre-e-preto-se-matando tão ao gosto da classe média conservadora do país.


E quando ele começar a te perguntar se você tem um CD com a abertura 1812 do Tchaikovski, pode acreditar. É culpa de "V de vingança".

2.1.10

Sci-Fi!



Arthur C. Clarke profetizou que em 2010 seria especialmente relevante para a humanidade. As duas superpotências, União Soviética e Estados Unidos, uniriam forças para investigar no espaço os estranhos fatos alienígenas passados na história anterior, a muito mais famosa "2001 - uma odisséia no espaço".
Quaaaaaá há há há há há!!!
No cinema, o segundo livro não foi usado para criar o roteiro do segundo filme. O filme "2010 - o ano em que faremos contato" só usa o ano do título literário. E agora que chegamos a 2010 nem podemos pensar que o finado Clarke é o culpado por esse futuro sem graça que está diante de nós. Ele mal viu 2001 decepcioná-lo!

É o seguinte: me enchi de futurico. Quero teleporte, viagens espaciais baratas, fusão atômica produtiva, um aeromóvel pessoal, visão de raio-X (controlável, pois não quero ficar como o protagonista do filme "O homem com visão de raio-x", que surta quando enxerga absolutamente toda a verdade do universo), download de aulas de língua e kung-fu direto no cérebro, robôs como a Rosie dos Jetsons, cubos concentradores de matéria, governo planetário unificado, utopia educativa, clonagem de dinossauro/dodô/lobo-da-tasmânia/pomba-migratória americana e cia, e claro, a Enterprise! Já estamos em um bom caminho: a África do Sul vai ter uma copa do mundo e não existe mais o Apartheid oficial lá. Clarke nem pensou nisso quando escreveu o livro...

Do futuro distópico já estou cheio. Estamos perto demais de "1984", "Admirável mundo novo", "O homem duplo", "Mad Max" e por aí vai.

Ao fim do ano de 2009 eu estava cheio de coisas a falar sobre como foi esse ano terrível que acabou com final feliz, mas quer saber de uma coisa? Não tou a fim de retrospectiva. Que venha o novo! Que venha o futuro! Em alguma outra ocasião, talvez eu fale de uma ou outra coisinha relevante do ano passado, mas será do mesmo modo como relembramos da revolução francesa: como história.

2010 pode não ser o ano em que entraremos em contato com uma espécie alienígena, mas torça para entrarmos em contato com a raça humana. Ela está escondida em algum lugar por aí na Terra, debaixo desses monstros tecnocratas incivilizados, destes alienados espaciais e interioranos, dos reacionários preconceituosos marcianos. A humanidade é a espécie nova a ser descoberta por todos nós nesse futuro que começou hoje.

E Vaos torcer para o Brasil não cair de novo naquele tempo de idade média em que a década começou.