23.6.11

O descontentamento procura suas vozes, quem se candidata?



Ontem assisti um “cover” de Raul Seixas em um bar rock’n’roll aqui perto de casa. Já vi boas bandas tocando por lá, públicos razoáveis, mas nada que se comparasse ao volume de pessoas gritando as letras e erguendo seus copos aos gritos satíricos de “Toca Raul”. Estava lotado, simplesmente, de fãs.

Claro, eu me incluo. Cantei “Gita” com a emoção de sempre, pedi “Novo Aeon” (e não fui atendido, não é uma música que qualquer um toque e/ou saiba fazer aquele finalzinho rap) e dei risada com “Aluga-se”.

É óbvio que a moda é cíclica, e a música, como fenômeno de expressão, igualmente se repete de tempos em tempos, e acredito que isso tem a ver com a sequência de adolescência após adolescência dos públicos. Sim, montes de pessoas que eram bebês, ou mesmo nem haviam nascido quando Raul Seixas morreu, estavam lá cantando e celebrando a sociedade alternativa. São minoria de sua geração, são, mas existem e não são poucos. Aqueles que cresceram escutando só Strokes ou White Stripes como o máximo de rebeldia se encantam com a mensagem genuinamente raivosa contra o mundo do Raul (eles enxergam o Nirvana como eu enxergava o Led Zepellin, algo lá no fundo da história).

Logo após a morte do Raulzito, na semana do eclipse (para quem não lembra: na música “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, ele cantava que só o entenderiam quando chegasse o dia do eclipse. Pois bem, Raul morreu 2 dias depois de um eclipse total do Sol), ele foi criticado pelo rumo péssimo de sua vida nos anos finais, pelos shows que não terminou de tão bêbado que estava, pela parceria duvidosa com Marcelo Nova e por aí vai. Quatro anos depois, Raul tinha mais fãs do que jamais tivera quando vivo, e essa onda se espalhou de São Thomé das Letras à China. Aí surgiu o famoso grito de “Toca Raul”.

Quando o novo milênio chegou, Raul era ultrapassado, datado, chato. Os fãs se enfiaram no seu nicho, e bandas se recusavam a tocar suas músicas nos bares da vida. Um mês atrás, resolvi dar uma nova chance ao Raul e fui lá desenterrar a pasta de músicas dele do computador.

E estava tudo lá. A clareza crítica, a ironia, a afiada análise social, a filosofia adequadamente profunda para os propósitos de uma música para todos, o tino de fazer música comercial sem ser raso, o desprezo pela alienação, o humor indescritível, a grandeza espiritual, o amor pelo viver livre. O cara foi muito bom no que fez, e quando olhei ao redor, vi que eu não era o único a revisar a atualidade das ideias anticaretice do maluco beleza.

Agora, passados mais de vinte anos desde sua morte, ganha um novo fôlego e público, que sintoniza sua revolta contra a burrice coletiva, a mentalidade politicamente incorreta que não tem sequer a coragem de se assumir fascista, a vida reacionária da classe média agonizante de Higienópolis, a face careta mesmo do mundo. Está mais adequado ao mundo de hoje que seu ex-parceiro, Paulo Coelho.

Senhor Seixas, o mundo evoluiu inegavelmente, não pode impedir sua voz e admite que não pode mais discriminar as pessoas por serem como são, não é mais dividido em duas superpotências, a informação corre para cima e para abaixo em bits, e as grandes gravadoras agonizam; só infelizmente continua merecendo as mesmas críticas hoje que merecia na sua época para aprofundar nesta evolução.

Só espero que suas palavras não tragam a revolução datada que seus fãs adorariam ver.

14.6.11

E onde estão as crianças?




Lá na era cenozóica, eu escrevi com alguns amigos uma lisérgica história envolvendo tudo que desejávamos detonar e colocamos a tarefa na mão de um grupo de antiheróis quadrinísticos. Basicamente, a coisa toda era sobre uma MegaCorporação de eletrônicos(!) que roubava crianças no terceiro mundo (!) para vender seus órgãos(!) embora dissesse para sua aliada Igreja fundamentalista norteamericana(!) que ajudava-as a arrumar casa em famílias abastadas e ambas conspiravam(!) para criarem um exército ciborgue ultrareligioso(!) às custas disso tudo.

Nem é preciso falar que a suspensão de crença necessária para engolir isso é quase tão grande quanto a que precisamos para assistir um filme de ação blockbuster. Claro que enfiamos diálogos ferinos, protagonistas absurdos e muitas explosões. Tudo isso para extravasar artisticamente a revolta com o mundo.

No meio dessa massa toda, estava um momento histórico onde o mundo todo tinha algo de errado. E pasmem, ainda estamos nele! E eis que me espanta ver que numa determinada entrevista um membro de uma banda da qual desejaria nunca ter ouvido nem mesmo falar de emocoloridobreganejorock (obviamente não darei a eles a honra de terem seu nome aqui) foi questionado por que raios todas as músicas eram sobre romance, balada e sei lá mais o quê. A criatura responde que não há mais nada do que reclamar então eles fazem só isso.

Mais nada do que reclamar? Em que cúpula de cristal nos picos de Higienópolis ou Ipanema este ser nasceu e foi mantido toda sua vida? Que jornais róseos ele leu na vida? Que televisão com censura dos pais ele pode assistir? Que estradas de tijolos amarelos ele usa para chegar onde se apresenta? Que palcos de diamante e plateia de burgueses à francesa tem nesses shows? Se arte é expressão, o que expressa alguém tão insensível ao que o cerca?

Qualquer ser humano que tenha um único dos 5 sentidos encontra facilmente algo do que reclamar pelo que acontece no mundo. Minha historieta adolescente falava de impunidade dos grandes poderes econômicos, da falta de laicidade dos estados, do fundamentalismo, da exploração dos países terceiromundistas, do abuso infantil, do tráfico humano, da falta de senso de justiça, do uso ilegal e ganancioso da tecnologia, do preconceito, do crime organizado e de pelo menos uns mil assuntos que ganhavam espetada nos diálogos entre a personagem que tentava ir pela lei e a que preferiria tudo feito no esquema olho por olho.

Basicamente, as pessoas esperam por um novo movimento hippie, um novo punk ou revolução francesa. E não metem as caras para mudar nada. O problema é que chegamos no momento onde todo mundo, repito, TODO MUNDO sabe o que é certo e o que é errado. Essencialmente, a humanidade toda sabe que devemos respeitar tudo que tem em volta como respeitamos a nós mesmos. Isso significa que abuso, exploração, preconceito, desrespeito aos direitos das gerações futuras, esgotamente de recursos naturais, desinteresse pelo bem estar alheio e várias outras coisas estão subentendidas. Pela primeira vez nos últimos 200000 anos, é possível sonhar com uma constituição mundial. John Lennon sorri na tumba.

E portanto, agora é a hora de praticar isso, e não esperar grandes impactos externos para nos obrigar. Quando as pessoas reclamam dizendo que o mundo está passivo, é por que não olham para o que está rolando nos países árabes. A primavera árabe simboliza a vez deles colocarem para si mesmos aquilo que boa parte do mundo conquistou na revolução francesa e na carta dos direitos humanos.

Aqui no seu país onde um imbecil diz que não tem nada do que reclamar, é hora de fazer seu papel de indivíduo e botar as mãos na massa sozinho, cobrando aquele em que você votou, reciclando seu lixo, respeitando o direito do cadeirante, assumindo que fez asneira no trânsito ao invés de tentar subornar o guarda... enfim, parando de esperar que alguma revolução venha te ensinar o que deve ou não fazer.

Quem espera que algo de fora lhe diga o que é o certo equivale àquela parcela do povo alemão recebendo Hitler como salvador da pátria e ignorando seus maiores pensadores apontando-o como o monstro que era. Os pensadores, coitados, ou fugiram do país ou foram mortos. O povo que achava que não analisou a coisa por si mesmo até hoje convive com as cicatrizes daquilo.

Exagero? O número de vezes em que você ouviu "ah, é Brasil, é assim mesmo" é o quanto você foi exposto ao conformismo explícito. E um milésimo do quanto foi ao implícito.