23.2.08

Marina



Dali de onde partem os navios para terras distantes, pescadores ociosos passam suas horas de aposentadoria ou sobrevivência aguardando dádivas vindas das profundezas, nasce talvez o mais poderosos sentimento a permear todo o espírito da humanidade: A vontade de se lançar ao mundo.

Ali, quando nos postamos em uma Marina, está o desconhecido. Uma enorme massa de um elemento estranho a nós, seres terrestres, mas familiar em um nível mais profundo, um grito ancestral de nossos antepassados peixes.


Pode perguntar a qualquer um. O que emociona em uma história? Situe-a no mar, na vastidão azul e poderosa, insubmissa à nossa vontade, mortal e plácida, e verá como tudo se altera. O mais banal dos causos se transforma em mito. Dali, do berço de Iemanjá, brotam os monstros, as sereias, os mundos fantásticos e as terras miraculosas. Ali, diante de seus olhos, está o caminho para Hi-Brasil, está a encarnação de nossos ódios e frustrações na forma de uma baleia branca, está nosso sonho de conquista em índias orientais e ocidentais, está nossa libertação das leis dos outros em barcos com bandeiras de ossos e espadas.

Ali, onde a Terra recebeu de seus filhos uma ponte para alcançar a imensidão que lhe faz par, onde o solo toca no fluido, o ser humano se faz outro. Ali, quando nossos olhos se tornam pequenos para abarcar toda a grandeza salgada e nossa imaginação faz ver todas as coisas e nenhuma, onde a vida começou e tem seu ápice, está nosso ímpeto de mudança. Está nosso mergulho no inconsciente, está nosso pulmão aquático para adentrar lugares invisíveis e sair metade peixe, metade sonho.

A Marina nos remete ao novo, ao lançar-se. Deixe-se ir com ela, e verá seu destino se multiplicar. Apenas observe dali o fluxo das ondas e as furiosas vagas, e sairá mudado. Dali, verá os olhos de Capitu, as curvas de Iemanjá, e as peraltices de Ondina. Poseidon acolhe aos que o respeitam, e sabe, quando fita o mar dali de onde saem os que farão a vida em outros mundos, a satisfação de ser sua uma enorme responsabilidade. A de aguardar a alma dos homens em seu ir e vir pelas vidas.

13.2.08

Bárbara

Diz-se de alguma coisa que ela é "bárbara" quando extrapola os limites de nosso entendimento, é fantástica, grandiosa e merecedora de respeito.

Na origem bárbaro era todo aquele que não falava a língua dos "civilizados", o grego e, posteriormente, o latim. Em suma, os homens das culturas clássicas achavam bárbaros todos os outros seres humanos. Mas não era no mesmo sentido acima...

O termo ganhou a pior conotação quando vieram as invasões bárbaras. Roma caiu, lá pelo século IV, e a humanidade foi agraciada com a amabilísima idade média, quando todo mundo virou bárbaro no sentido popular da palavra. Perdeu-se uma enorme quantidade de avanços e sabedoria nas fogueiras da ignorância e do fundamentalismo. Não fossem os bárbaros na arábia e no oriente distante, a civilização teria colapsado.

Passam-se muitos anos e a idéia xenofóbica de bárbaros versus civilizados é repetida milhões de vezes na boca de governantes temerosos de fazerem feio se não tiverem um inimigo fora do país para mostrar serviço. É, se você lembrou dos caras lá da parte norte do mapa americano, é uma pessoa minimamente inteligente.

Mas a barbárie não está fora. A barbárie está em cada pessoa que passa o sinal vermelho, suborna o guarda de trânsito, compra madeira de floresta protegida sem ligar para isso, joga papel no chão, compra filme pirata, não vota direito e fecha a cara para crianças.

Já ouviram "Ah, faz também, todo mundo faz!". Eu já, milhares de vezes. Da televisão, centenas. De pseudo-amigos, outras tantas. De gente na rua, muitas.
Tomei uma decisão. Não vou ceder à barbárie. Não sou todo mundo. Vou aceitar o preço de ser civilizado, não obstante a incapacidade da maioria de, por enquanto, ser guiada por suas civilidades e não por suas barrigas e hormônios. Isso vai ser um ponto que vai tornar minha vida um pouco mais merecedora de cautela em seus atos práticos.

Mas se quero uma vida Bárbara, assim precisa ser. Eu gosto de como vai ser meu futuro sendo deste jeito.

12.2.08

O Riiiiiiiildo Piracicaba...

Conheço há uns vinte e poucos anos um cara chamado Rildo. Logo que o conheci, quando entrávamos na escola armados de porretes para não sermos pegos pelos pterodáctilos do caminho, o nome dele logo evocou (na cabeça dos moleques que admitiam ouvir a rádio da Vó) um dos clááááááássicos do cancioneiro popular. "O Rio de Piracicaba", cuja gravação mais conhecidas das vovós é na voz de Sérgio Reis.

Lembrei disto quando vi o lançamento da mais nova edição do "Dicionário do Dialeto Caipiracicabano: arco, tarco, verva".

De Piracicaba se diz que é a princesa das cidades fundadas pelos caçadores de esmeraldas. Talvez em nenhum outro lugar do mundo exista gente tão paulista como lá. Ali está o interior em sua mais genial caracterização. Gente jovem de lá se orgulha do seu sotaque (dialeto?) pois se ele rende até dicionários, é motivo de apego, e não de vergonha.

O dicio0nário marca uma das poucas e corajosas manifestações em prol da cultura paulista. Todos sabem quem é Ariano Suassuna na exposição do centro cultural, cantam com Caetano "Sampa" e com Gil "Punk da periferia", comem pão de queijo no centro e lutam pela preservação dos costumes dos habitantes do Xingu. Mas quem além dos piracicabanos lembra de preservar a cultura paulista? Existe folclore na cidade mais grandiosa abaixo do equador. Existe Mito no litoral empesteado de turistas do sul do estado. Mas quando vemos a festa do dia do folclore das escolas, vemos cordel, boi caprichoso e garantido, Bombachas, chimarrão e cobra-grande, mas não vemos nada do folclore de São Paulo!

Alguns milhares de anos atrás, um paulista resolveu reagir a tudo isto. Conscientemente ou não, Monteiro Lobato resolveu colocar em livros parte das histórias que escutava quando criança. Mas dali, não apenas parte da rica herança cultural do povo herdeiro dos bandeirantes foi salva, mas foi igualmente misturada a referências européias, clássicas, dos contos de fada dos irmãos Grimm e de Esopo.

O paulista, e em especial o paulistano, resolveu que com o café, a indústria e a modernização não poderia ser caipira. Guardou seu sotaque e sua arte atrás dos sonhos dos imigrantes, escondeu suas crendices e seus mitos no cofre de suas indústrias e sua exoticidade e extravagâncias nos ares cosmopolitas da avenida Paulista.

Mas quem busca a forma e o conteúdo de si não pode esquecer-se das raízes indígenas plantadas pelos desbravadores na crença daquele povo. Longe dos mitos medievais que permearam as enormes levas de imaginação dos homens que colonizavam o norte e nordeste do país, o bandeirante tinha sua cultura muito mais invadida pelas lendas dos Tupis e dos Guaranis. O folclore da banda de baixo do país é de certa forma mais brasileiro neste aspecto. Enquanto cangaceiros eram os novos cavaleiros, os bandeirantes eram pajés, xamãs, em mergulho no ventre da Matre-Brasilis.

Há centros de cultura gaúcha no Acre. De cultura nordestina até na Irlanda. De estudos do caboclo matogrossence. E não há ninguém pensando no vasto e alijado repertório caipira do estado mais plural do país. Mas sim, usando desta pluralidade para afogar o centro onde esta pluralidade pode se manifestar.

Não é por bairrismo ou afronta, mas quem luta para não esquecerem dos povos, cantigas, lendas, monstros e temores arcaicos, brincadeiras de rua e roda, superstições e palavreados daqui merece um nobre prêmio de consolação. Merece ser chamado de brasileiro.

Para quem quer saber mais sobre o dicionário, taí:
http://eptv.globo.com/caipira/interna.asp?ID=17896

10.2.08

La Paloma

Patrick Suskind é um daqueles autores de classificação esquisita. Chamou-me a atenção depois do filme "O perfume", fidelíssima adaptação de seu livro homônimo. Para quem não viu, é uma obra do estranhamento no meio hollywoodiano. Com um elenco generoso e produção caprichada, fala sobre cheiros e a alma de nossa memória baseada na química, um sentimento impossível de ser traduzido pelo cinema.

E agora acabo de ler "A pomba", um romance miniatura, quase um conto. Que expõe o caos interno despertado/revelado na vida de um senhor de meia idade pela visão de uma pomba na manhã de um dia como outro qualquer. A pomba apenas o fita, e faz desmoronar toda a ordem, planejamento, calma, quietude, competência e lógica cultivados por ele no decorrer de décadas de vida.

Repentino, me dou conta de quantas pombas encontramos por aí. Elementos rotineiros do cenário de nossas vidas, mas carregados de tal significação em momentos chave que tornam-se capazes de obliterar completamente com nossas certezas e vida. Coisas comuns, mas postas no momento e lugar certos, são eficazes em nos desnudar internamente e nos pôr a questionar como mil sessões de terapia freudiana não são.

Um chiclete grudado na roupa já o pôs em polvorosa? Uma coceira na sua perna causou surtos histéricos na pessoa ao seu lado? um rato cruzando a rua te fez mudar todos os hábitos de higiene cultivados desde a mais tenra infância? Então você teve sua dose de pomba.

Apenas os mais inteligentes dentre os inteligentes são capazes de, extraindo lições do vulgar a cercá-lo, mudarem suas vidas e mesmo a de todos ao seu redor. Isso se faz ao custo de muita atenção, como já dizia o velho e bom Pasteur, "A sorte favorece as mentes preparadas"; mas também deve algo a uma boa dose de sorte, ou, se preferir, sincronicidade de elementos.
A sincronicidade faz possível torcer a existência quando vemos uma velhinha ao atravessar a rua no exato instante de sensibilidade para assuntos previdenciários de nosso cérebro. Não fosse algo visto diariamente calhar de nos surgir no momento sensível, muito daquilo chamado por aí de intuição seria perdido.

E se você quer mesmo saber, é essencial buscarmos por estes momentos de iluminação, sermos antenas sofisticadas e captoras das lições diárias fornecidas por nossos cérebros quando sua capacidade filosófica é justaposta à observação, (nem sempre atenta, mas simplesmente livre) da consciência.

Pense no vôo controlado e preciso dos bandos indo dormir. No asco de ver uma pomba fazendo sujeira na porta de seu quarto. Pense na inacreditável capacidade migratória e de orientação de uma pomba. Pense na habilidade para sobreviver ao meio humano adquirida por gerações e gerações de pombas urbanas. Nas doenças ou na substância única no mundo das aves (O "leite de pomba") produzidas pelas mães pombas para alimentar seus filhotes, um passo evolutivo incrível. Quantas lições diferentes pessoas diferentes podem extrair, a mesma pessoa pode extrair conforme o instante de avistamento da pomba.

E não obstante seu símbolo de paz, a piada que é ver Mary Poppins alimentando pombas e ensinando crianças a manterem estes bichos perto de suas casas.

Não alimentem as pombas. Elas sabem se virar. Alimente sim sua mente, pois nunca se sabe o momento no qual a pomba pode mudar sua vida.

8.2.08

Bruna

Assisti ao surpreendente "O signo da cidade", o tão falado filme escrito pela Bruna Lombardi e dirigido pelo seu marido, Carlos Alberto Ricelli.

Afora a imensa sutileza, poética e riqueza de personagens construídos com palitos e não com blocos de concreto armado, o filme transpira uma coisa que é muito bem vinda no cinema nacional: inteligência.

Bruna Lombardi ainda é uma das mulheres mais lindas da face da Terra. Provavelmente a brasileira mais linda depois dos 40. E eu, tendo lido recentemente algumas de suas publicações, em especial as poesias, vejo ali não só uma estrela, mas uma pessoa de carisma literário incrível, capaz de usar frases curtas e simples como a maior arma anti-cinemão dos últimos tempos. Nada de críticas ferozes. Apenas o exemplo.

Aos curiosos: "O signo da cidade", como parece, é o nome de um programa de rádio de astrologia de uma rádio bem sem graça, apresentado pela personagem da Bruna. Ela tem um sério problema para uma apresentadora: se envolve com as pessoas ao seu redor, sejam elas as que ligam em busca de conselho, sejam as que a cercam.

E nesta teia de relações dela circulam as inúmeras histórias intercruzando-se continuamente, exibindo uma telúrica ponte entre homens, astros e destinos, moldadas pelas decisões e passividades de seus componentes.

Não é daqueles filmes onde tramas paralelas convergem para um final arrebatador. Mas sim, o retrato de um instante, onde as pontas permanecem ativas e continuarão a crescer, em novas e subjetivas relações.

Sim, o filho do casal, Kin Ricelli, está no filme. Eu, no lugar do pai dele, teria saído para tomar um café na filmagem da cena caliente máxima do filme.

E se uma das conclusões apresentadas pela trama é da inevitabilidade do chicote das ondas sofrido pelos que tentam resgatar os náufragos das ondas (quem nunca chorou sozinho na cama após fazer de tudo para ajudar outrem e relegou a segundo plano aspectos da própria vida no processo, atire a primeira lágrima), faz bem justamente por não nos permitir esquecer daqueles ao nosso redor merecedores da mais profunda admiração.

Vejam a Bruna. Ela fez por merecer.

In nomine

Nas próximas postagens, vou fazer uma mini-homenagem a algumas pessoas. Mas não farei textos sobre pessoas. Apenas, da série de coisas interligadas do multiverso, seus nomes estarão aqui para criarem uma ligação com um assunto não necessariamente relacionado com a pessoa ou com algo concernente a elas.
É um modo de fazer brotarem novas flores no campo de Imatéria. E não, não vai ter texto para todo mundo. Eu conheço gente demais para isso. Mas certamente há algo a ser dito inspirado por certos nomes.

E não há ordem, a não ser aquela dada pelas musas.

Quem estará por aí?