10.2.08

La Paloma

Patrick Suskind é um daqueles autores de classificação esquisita. Chamou-me a atenção depois do filme "O perfume", fidelíssima adaptação de seu livro homônimo. Para quem não viu, é uma obra do estranhamento no meio hollywoodiano. Com um elenco generoso e produção caprichada, fala sobre cheiros e a alma de nossa memória baseada na química, um sentimento impossível de ser traduzido pelo cinema.

E agora acabo de ler "A pomba", um romance miniatura, quase um conto. Que expõe o caos interno despertado/revelado na vida de um senhor de meia idade pela visão de uma pomba na manhã de um dia como outro qualquer. A pomba apenas o fita, e faz desmoronar toda a ordem, planejamento, calma, quietude, competência e lógica cultivados por ele no decorrer de décadas de vida.

Repentino, me dou conta de quantas pombas encontramos por aí. Elementos rotineiros do cenário de nossas vidas, mas carregados de tal significação em momentos chave que tornam-se capazes de obliterar completamente com nossas certezas e vida. Coisas comuns, mas postas no momento e lugar certos, são eficazes em nos desnudar internamente e nos pôr a questionar como mil sessões de terapia freudiana não são.

Um chiclete grudado na roupa já o pôs em polvorosa? Uma coceira na sua perna causou surtos histéricos na pessoa ao seu lado? um rato cruzando a rua te fez mudar todos os hábitos de higiene cultivados desde a mais tenra infância? Então você teve sua dose de pomba.

Apenas os mais inteligentes dentre os inteligentes são capazes de, extraindo lições do vulgar a cercá-lo, mudarem suas vidas e mesmo a de todos ao seu redor. Isso se faz ao custo de muita atenção, como já dizia o velho e bom Pasteur, "A sorte favorece as mentes preparadas"; mas também deve algo a uma boa dose de sorte, ou, se preferir, sincronicidade de elementos.
A sincronicidade faz possível torcer a existência quando vemos uma velhinha ao atravessar a rua no exato instante de sensibilidade para assuntos previdenciários de nosso cérebro. Não fosse algo visto diariamente calhar de nos surgir no momento sensível, muito daquilo chamado por aí de intuição seria perdido.

E se você quer mesmo saber, é essencial buscarmos por estes momentos de iluminação, sermos antenas sofisticadas e captoras das lições diárias fornecidas por nossos cérebros quando sua capacidade filosófica é justaposta à observação, (nem sempre atenta, mas simplesmente livre) da consciência.

Pense no vôo controlado e preciso dos bandos indo dormir. No asco de ver uma pomba fazendo sujeira na porta de seu quarto. Pense na inacreditável capacidade migratória e de orientação de uma pomba. Pense na habilidade para sobreviver ao meio humano adquirida por gerações e gerações de pombas urbanas. Nas doenças ou na substância única no mundo das aves (O "leite de pomba") produzidas pelas mães pombas para alimentar seus filhotes, um passo evolutivo incrível. Quantas lições diferentes pessoas diferentes podem extrair, a mesma pessoa pode extrair conforme o instante de avistamento da pomba.

E não obstante seu símbolo de paz, a piada que é ver Mary Poppins alimentando pombas e ensinando crianças a manterem estes bichos perto de suas casas.

Não alimentem as pombas. Elas sabem se virar. Alimente sim sua mente, pois nunca se sabe o momento no qual a pomba pode mudar sua vida.

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