21.3.06

Arthur versus Hollywood

Hoje eu revi “Rei Arthur”.
Para qualquer ser humano que saiba quem sou eu, sabe também que os mitos arturianos ocupam na minha arquetipi-mente um espaço importante e quase sagrado. Depois da mitologia grega, são o mais representativo festival de signos do meu cérebro e, por que não em nível inconsciente, da população ocidental com alguma cultura.
O filme vale o tempo despendido, basta para o que geralmente comento sobre filmes. Mas o importante é que, dentro de uma linha de raciocínio que tenho buscado finalizar há tempos, ele serve como uma luva. Mito que é, preenche, dentro de uma realidade imutável e independente do período em que estamos, uma lacuna sobre o entendimento de nosso mundo atual. Então senta que o texto ficou longo.
Posso estar superestimando um filme do brucutu Bruckheimer, e estou mesmo. Não supera “Excalibur”, de John Boorman, nem de longe. É fraquinho... mas é a prova definitiva de que arquétipos superam seus limites (ou os limites mercadológicos que tentam impor-lhes) pelo simples peso de existirem.
Mas de que estou falando? Do mundo, é claro, e do seu principal intrometido de hoje, os EUA. Bom, não é novidade que o cinema Hollywoodiano espelha sobremaneira a posição política do povo americano que tem alguma visão. Nem sempre boa, mas existente.
Esqueçamos os caras que lutam pela não necessidade de porte de armas para carregar um canhão do Texas. O americano médio tem sua mensagem estampada simbolicamente no cinema desde aquele fatídico momento em que Scarlett O´Hara levanta o nabo pro céu e grita que “nunca mais passarei fome!” (entra a musiquinha, cenário sulista lindo com uns escravos mortos debaixo da terra, e vam´bora). A diferença é que, até então, o cinemão americano tinha uma penetração humilde no imaginário externo mundial. Uma superprodução de Hollywood não afetava eleições nem fazia crianças tailandesas brincarem de soldado americano. Mas note: Scarlett, a americana prototípica (o sobrenome irlandês é proposital: a pessoa que tem descendência fora mas que larga seu passado para viver o sonho americano) fala abertamente que “Dane-se se eu pilhar, estuprar, destruir, enganar etc. Eu vou ficar bem”. Mas isso é anda um grito pra dentro, americanos falando para americanos saídos da miséria da grande depressão, evocando um passado miserável mas que fez seu caráter. E o fato de que Scarlett fica sozinha no fim não deixa de ser um preço que ela paga por ser uma besta egoísta.
Gente, eu vou falar de maus aspectos interpretáveis de vários filmes, mas isso não quer dizer que eles sejam manipulações cruéis de uma conspiração americanóide contra o mundo. Eles apenas espelham sem querer alguns aspectos que seus espectadores precisavam ver na tela para que o filme tenha se tornado um sucesso. Quer dizer, os antigos, que primeiro eram feitos e depois faziam sucesso pelo que diziam, ao contrário dos blockbusters de hoje.
No passo seguinte, a americanização do cinema pós 2º guerra espanta o cinismo da fase noir e cínica imediatamente anterior e produz espetáculos, de fundo extra-americano como “Ben-Hur” e “Os dez mandamentos”, e a fase áurea do faroeste, que é maior que os EUA. Nestes filmes, uma épica costura diz o seguinte: uma onda civilizatória tá chegando, seja (respectivamente aos exemplos acima) o cristianismo, o povo prometido ou os pioneiros, e ela traz mudanças pra melhor a vocês, incivilizados. São os EUA reconstruindo com suas prioridades a Europa destruída pela guerra e fazendo política de boa vizinhança com o resto do mundo (de onde você acha que veio a ordem para Disney criar o Zé Carioca?)
Marca o Ben-Hur que ele é a chave para entender o que vai acontecer.
Depois, o cinema entra em uma fase meio morna, com a Europa brilhando, e uma boa safra de atores. Contra o comunismo, o cinemão entra na fase “nós contra eles”, sejam “eles” marcianos, espiões ou índios. 007 está aí. Estranhamente, os que vieram em seguida foram ainda mais cínicos, e o cinema ficou bom nos anos sessenta para setenta. Astros de calibre, talento de sobra, e cai como uma bomba filmes como “Todos os homens do presidente”, “Apocalipse Now” ou mesmo “Rambo I”, que criticam o monstrengo que o governo americano se tornou sem condescendência. Temos um inimigo, até temos, mas estamos nos tornando piores do que ele para combatê-lo.
Mas daí entra alguém com cérebro no Kremlin, um sem cérebro mas com uma superpotência para peitar na casa branca, e um bando de gente com idéias que foram simplificadas demais no comando do dinheiro de Hollywood. Spielberg e companhia. E até 007 entra em uma fase de crítica. Acho que é por isso que as pessoas não consideram Timothy Dalton um bom 007 e não passa mais “Rambo III” com seus heróis muçulmanos na TV. Rambo é a maior vítima da simplificação de idéias dos anos 80. E destruiu as chances do competente roteirista Silvester Stallone ter uma carreira duradoura. O cinema por fim alienou-se de vez?
Não, pois daí ele viu o muro cair, (alguém se lembra da onda de filmes pró-liberdade, como “A lista de Schindler” e “Braveheart”?), todos se perguntam se o leão vai rugir e, estranhamente, o eleitorado colocar um cara de paz no poder. E na fase Clinton, apesar dos filmes que tiraram sarro de tudo, aparecem heróis presidentes de monte: “Independence Day”, “Meu querido presidente”, “Presidente por um dia”, “Força aérea 1” e por aí vai. Até “Top Gang 2” usa este recurso. Pois Clinton era alguém que fazia os EUA um lugar legal para o resto do mundo. Tocava Sax, catava estagiária no fim do turno (lembrando que ele fez uma guerra inútil e sangrenta no leste europeu para as pessoas esquecerem disso. Assistam “Mera coincidência” e pensem que se ele é mera coincidência), enfim, apesar disso, um humano com um sorriso inteligente no rosto. Ele era tudo isso? Não interessa, mas ninguém odiava tanto os EUA na época.
Salvo uns caras que o Reagan treinou lá no Afeganistão.
É aí que entra o mito: quando entra, discutivelmente, o Bush, quem o cinema tira da mala? O império romano. “Gladiador” traz de volta o gênero épico. Mas ao invés do cristianismo e da onda civilizatória de “Ben-Hur”, uma força sem espiritualidade alguma, amorfa, indescritivelmente armada e poderosa (a batalha de Maximus contra os bárbaros é de uma eficiência tão cruel e mais bem feita que a “guerra do golfo 2, a missão falha”, de “Bush 2, o clone” do horrível cinema da realidade). Quando alguém se rebela, é contra uma fruta podre que manda (quem será?) e não contra o império e seu jeito de ser. E matar a fruta podre implica em morrer também (então pensa bem no que vai fazer, viu?). E quem manda nesta era? Bom, o presidente retratado em “X-men 2” é um tapado manipulável por militares! E desafio alguém a me dizer um filme atual com um presidente simpático. E nem precisamos citar Michael Moore.
E então o revival do épico traz “Tróia”. Quem leu minha crítica do filme sabe que ele não vale tanto quanto “Cazuza” no retrato de heróis para essa geração, mas mostra um herói que não luta por um país, mas sim por seus fins. E esta idéia se completa magistralmente em “Rei Arthur”.
Mas como assim?
Qual é o momento que você vê agora na tevê mundial? Qual é o mundo que se revolta contra atentados em Beslan mas esquece do que aconteceu em Bophal? Mas que igualmente quer finalmente entender por quê alguém acha legal jogar avião num prédio.
O que acontece neste Arthur enganosamente baseado em fatos mais reais que os anteriores? Bom, advirto que aquela marketagem de “baseado nas mais recentes descobertas arqueológicas” é papo furado brabo. Aquela visão é tão real quanto a que mostra a Morgana como uma fada maligna, Arthur como um rei celta ou Merlin brigando com a Madame Min. Quer saber por quê, escreve aí que depois que a gente fala disso, ou vai ficar longo demais. É assunto pacas.
No fundo no fundo? Quem não gosta de revelações e não viu o filme pare por aqui, antes de mais nada. Vamos ao centro da questão. O Arthur do filme é um mezzo romano, mezzo nativo (falam “bretão”, povo que não existia à época, mas tudo bem) que sonha em terminar seu trabalho lá naquele fim de mundo ilhado e voltar para Roma, e mandar seus cavaleiros de volta para seus lares ancestrais. Quando Roma larga eles de lado e desencana da Bretanha por motivos egoístas, eles deveriam desencanar junto, fugir, não é?
Mas daí uma mulher (quem lembra que o significado do nome Guinevere é “Soberania da Terra” deve estar se arrepiando neste momento) lembra-o, e por tabela aos demais, que lar é o povo te acolhe, a cultura que vem da terra, as raízes de nossos ancestrais. Se um império exterior nos separava e agora mostrou sua verdadeira face, e por outro lado inimigos sem nome (os saxões não são nomeados o filme todo!) espezinham, agora devemos cuidar de amarmo-nos pois somos todos irmãos, filhos da mãe-terra, e lutarmos honradamente por isso.
Não, não aparece isso no filme, que mal rala estes significados, mas quem lê entrelinhas (eu diria “procura pêlo em ovo”) acha aí o tema da soberania da Terra e, mais ainda, o sentido de tribo global. Somos um povo, parte de muitos, mas a cultura que nos criou, a Terra que nos anima, é quem somos, acima de quem manda em nós.
Depois de tanto tempo tentando impor seu modo de vida, o império (qual?) mostra sua face e nos dá a chance de sermos nós mesmos. Sejamos bretões, brasileiros ou tailandeses; cristãos, pagãos ou muçulmanos; Txucarramães, góticos ou intelectuais. Que tal mandarmos o império ir passear e consumir a si mesmo nas suas contradições (todos sabemos que o império romano morreu olhando para seu umbigo que havia se perdido do centro do mundo) pararmos de alimentá-lo, e irmos cuidar de sermos nós mesmos com os recursos que temos, sustentando-nos sem machucar nossa terra, e deixarmos cada um ser do jeito que quiser? Aprendemos, antropofagizamos com o período em que o poder enorme e externo estava aqui, mas podemos falar com outras pessoas, trocarmos informações, aprender, e usar este saber do império para meus fins e dos meus amigos e conterrâneos, mesmo que sejam de uma tribo que só existe na minha mente e forma de vestir e/ou pensar e/ou etc...
Quem criou softwares livres senão alguém que acreditava nisso?
E, se em algum momento esta necessidade mítica se mostra verdadeira, é agora. No momento de maior desespero, o rei se levantará e apontará Excalibur para nos mostrar o caminho.Foi tudo que eu quis dizer nos parágrafos acima.