22.4.08

Marcos

Na primeira medição de um terreno para delimitar um território, nasceram três coisas:

1º- A ferocidade territorial humana ganhou contornos visíveis e qualquer idiota portando um tacape grande o bastante podia se dizer dono de um pedaço de terra, fonte de toda disputa territorial, fundiária e por moradia desde então, mas este ponto crucial da cretinice da espécie merece outro tipo de discussão;
2º - A geometria e...
3º - A necessidade de colocar pontos precisos de delimitação de área, onde se identificasse as curvas, linhas, pontos importantes e o centro de cada terreno. A isto se deu o nome de marco, e as marcações passaram a ser integrantes de nossa visão de mundo.

Talvez por causa disso, hoje temos o hábito de pôr referências internas para nossa vida. Estabelecemos marcos que nos dividem em antes e depois deles, separam fases de nossa psicologia, ou são literalmente os momentos onde nossa vida vai de cabeça para baixo. Suponho que quando o José Hamilton Ribeiro perdeu a perna no Vietnã (não sabe quem é o maior repórter de guerra do país? Buscador nele!) ele não teve muitas dúvidas sobre aquele ser um marco em sua vida. Dos mais negativos, é verdade, mas foi.

Mas em geral nossos marcos são mais sutis. O dia do aniversário que nunca fora comemorado e de repente enche a casa de presentes, bolo e gente; aquele "não" ante a certeza; o chocolate que nos salva no momento de maior vontade de matar o cretino do trabalho; aquele palavrão bem colocado que nos faz livres da repressão familiar... Todo mundo pode identificar coisas aparentemente fúteis, estabelecedoras de uma nova fase na existência.

Os bons mesmo são aqueles não tão comuns. Onde torcemos nossa personalidade (dita imutável) graças a uma revelação surgida em nosso intelecto, e não forçada pelas circunstâncias.
Estas revelações capazes de alterar toda a dinâmica de nosso ser, nascidas de observação, lógica, inspiração espiritual, harmonia com nossos corações... tudo isto junto ou nada disso, são as que nos definem como mutantes verdadeitos, não nos obrigam a ser sempre iguais e fazem nossa alegria quando encontramos quem não vemos a muito tempo e dizem "você parece igual, mas tem algo dentro de você tão diferente..."
Isso é show de bola.

Posso identificar em mim mesmo alguns destes momentos sem sofrer. Outros terão que ser puxados dos fundos da memória. Os negativos, os traumas, em geral são ocultos por nossas mentes. Lutamos contra suas consequências com os momentos de mudança positivos. Um livro pode valer mais que anos de terapia, uma terapia bem conduzida pode ser melhor que uma viagem de peyote xamãnica, um porre de vinho pode ser melhor que todos os livros do mundo. E todos podem nos mudar se surgem no momento certo, quando mantemos nossa mente aberta a ser radicalmente mudada...

Posso identificar pelo menos um exercício de teatro que me fez dar um salto para fora da adolescência. Uma bronca de diretor que me fez ver o palco como outro mundo. Um fora que me fez retrair-me em conchas cada vez mais grossas. Uma lágrima escutando uma música me mostrou o que é arte. Um porre de vinho que me fez começar a sair de conchas. Um susto no trânsito que me fez tornou atento às armadilhas de meu corpo em conflito com minha mente. Um livro ano passado me deu a chave de minha luta contra a barbárie. Outro, muitos anos atrás, me colocou em contato com os Deuses em cada pedaço do universo e da imaginação. E talvez as últimas 24 horas tenham sido outro marco. Só o tempo dirá.

O mais estranho foi encontrar o Marcos quando este texto já embrionava na minha cabeça. Se os momentos de mudança não são extraídos por nós daquilo que nos cerca, ou de nossas mentes e imaginação, eles se apresentam sozinhos, mas daí, não são necessariamente como gostaríamos que fossem.

7.4.08

Priscila

Os gregos antigos acreditavam que vivemos na era de ferro. Hesíodo relata as diversas eras da humanidade citando os eventos que vão dando forma ao mundo da mitologia e enfim chega até a era dos homens mortais, esta, onde a presença dos deuses já não é sentida diretamente e o trabalho e a justiça são os valores capazes de elevar os donos deste tempo, os humanos, para a morada dos Deuses.

A era de ferro tem como marco inicial a guerra de Tróia. É o ponto culminante da vida do último dos semi-deuses, Aquiles. Os semi-deuses, filhos dos Deuses do Olimpo, são os donos da era anterior. Seus feitos são mais próximos aos do homem, e sevem para dar exemplo e molde ao caráter deste. Na guerra de Tróia, Aquiles é morto quando um homem comum atinge seu ponto fraco, o calcanhar, com uma flechada.

E a guerra somente é vencida por um estratagema humano: Ulisses tem a idéia de construir um cavalo de madeira e entregar aos troianos, para assim, através da inteligência (alguns diriam da trapaça), conseguirem vencer uma guerra capaz de destruir um semi-deus. É a vitória da perspicácia humana, e destaca a inteligência como ponto forte do homem.

Mas não é aí que se encerra a era de maravilhas. Ulisses precisa voltar para casa, e aí começa a Odisséia, narrando a jornada dele até seu lar.

Ulisses enfrenta, sempre munido apenas de sua malandragem, sereias, o último dos titãs (o cíclope Polifemo), a feiticeira Circe e dois monstros marinhos abomináveis: Charibdis e Scilla.
O primeiro era um ser divino, filho de Pontos e Géia, e controlava as marés. Costumava jogar barcos atrevidos contra um enorme penhasco.

Já Scilla, a última criatura da jornada de Ulisses, era uma humana, transformada em ser maligno por Circe, quando esta se apaixonou por um tritão enamorado por Scilla.

Scilla destrói cada ser humano que passa perto de si. A habilidade para pilotar barcos e comandar faz de Ulisses o único que escapa de sua fúria, e logo que consegue sair de seus tentáculos monstruosos, consegue voltar para sua terra e exigir seu trono ao lado de sua amada. É o fim da era dos semi-deuses definitivamente, e desde então os gregos contam a história de homens e reis, não mais de deuses e monstros.

Os gregos entendem, portanto, seu tempo em Pós-scilla e pré-scilla. Prescilla, Priscila. Aquilo que vem da antiguidade, de antes do tempo dos mortais. Mas falta Priscila em nossos tempos. Os homens, na ânsia por mudar, por conseguir seus próprios feitos, esqueceram das lições deixadas pelos deuses e semi-deuses nos tempos anteriores a Scilla.

E acabamos nos deixando levar pelas pequenezas da alma humana. Desprovida de centelha divina, a maioria cai na facilidade dos instintos ao invés de lutar pelo seu próprio brilho interior, pelo herói dentro de si. Não entende o sacrifício dos seres míticos que deram tudo de si por nós, para trazer a sabedoria e a civilização e dar de presente àquela raça nascente.

Mas prefiro ser alguém que tem dentro de si um tanto daqueles tempos pré-scilla e luta contra os monstros de meu tempo a admirar-me com o humano rasteiro espalhado por aí.