24.12.11

Natal, festa laica.




Feliz natal a todos! Feliz ano novo! Votos de felicidades mil.

De todos os cumprimentos acima, tão repetidos nesta época, o único que pode ser dito a qualquer um sem risco de ofensa é o último. Votos de felicidade são bem vindos em qualquer religião, de qualquer povo, em qualquer época.

Cansei-me de ouvir a galera pseudointelectual descer a lenha no natal, no cinismo da época, no consumismo desenfreado e tal. E os engraçadinhos informados, dizendo que em tal e tal cultura o ano só é comemorado em tal data e o ano comemorado já é o sei lá qual. Fora os chatíssimos neopagãos reclamando das datas e símbolos roubados pelo cristianismo e a discussão de celebrar algo invernal no meio dos trópicos brasileiros.

Concordo e discordo com todo mundo, mas esse mau humor não me pega. Este ano tive uma prova estranhamente delicada vinda de uma operadora de TV a cabo, esses monstrengos que cobram absurdo por conteúdo dos outros. O anúncio dizia que tinha um presente de fim de ano para os seus assinantes, pois tal e qual canais estariam com sinal liberado este mês.

Note: presente de fim de ano, não presente de natal. Eles ganharam a simpatia de meio mundo por não terem vinculado a ideia de presente com nenhuma tradição religiosa específica. Simplesmente celebrem, pessoas.

Portanto, feliz fim de ano a todos! É época de confraternização sim, de dar presente, de torrar o 13º salário para agradar gente ao nosso redor, de ver família e comer até a barriga doer, de engordar com nozes e castanhas e panetone de chocolate com pernil e peru, de encher a cara de champanhe vestido de branco e desejando paz para o mundo, de renovar votos, de prometer mudar nos próximos 365 dias, e isso não tem absolutamente nada a ver com nenhuma cultura ou postura ideológica. Tem a ver apenas e somente com celebrar a vida!

E você, seu chato que reclama que agora devia ser época de reflexão, reflita, E divirta-se. Essas coisas PODEM ser feitas juntas.

22.11.11

Vampire!




Em 1987, Peter Tosh lançou seu último álbum: “No Nuclear (holocaust) War”. Em setembro do mesmo ano, foi assassinado por assaltantes, um dos quais ele mesmo tentara ajudar a conseguir emprego após anos preso. Há quem diga que o assassinato foi encomendado, como se diz de todo músico ativista morto. É provável, como é com todo músico ativista morto, que o boato seja verdade.

O que um músico de reggae, estilo associado à paz, maconha, defesa dos direitos humanos e de liberdade de expressão, Sol, praia e Caribe tem a ver com vampiros?
No álbum há uma música chamada “Vampire”, um dos reggaes mais geniais já compostos. Atentemos para o fato de que Tosh é o segundo mais conhecido compositor do Reggae, logo atrás de seu companheiro no The Wailers, Bob Marley. “Vampire” usa a figura do vampiro como um símbolo para tudo aquilo que suga a autenticidade, a leveza, a pureza dos jovens. O vampiro da música é velho, carrega o passado como uma jaula onde prender os que pensam inovadoramente.

A capa do disco mostra Tosh usando uma máscara antirradiação na frente de uma explosão nuclear, e aos seus pés estão bombas, uma americana e outra soviética. O visual do alienígena do filme Predador deve ter sido inspirado nesta capa!
A composição é terrivelmente atual. Enquanto o resto do disco hoje soa datado, Vampire poderia ter sido composta ontem. Não fosse um porém: o vampiro atualmente em moda é um cretino.

Aí entra o assunto. Pra quê vampiros? O vampiro se tornou figura literária popular depois de um surto de casos de vampirismo relatados no leste europeu no século XVIII. As lendas circulavam há tempos, mas bem na época em que o iluminismo destruía a maior parte do obscurantismo medieval, explodiram relatos que colocaram em polvorosa a mente que buscava explicações naturais para tudo que existia. O Vaticano enviou um especialista para descobrir o que acontecia, o padre Calmet, conhecido por sua prudência e cientificismo. E o tiro saiu pela culatra! Seu relato não nega nem confirma acontecimentos sobrenaturais, e torna disponível ao mundo imensa quantidade de dados sobre como é, se combate e se localiza um vampiro.


padre Calmet: mais informações aqui: http://www.fafiuv.br/img/noticias/fotos8/calmet.pdf

Em suma, falem bem ou falem mal, mas falem de algo e essa coisa ganha fama. O fim do surto de vampiros iniciou um período de apropriação da criatura pelo imaginário popular, enquanto os livros ganhavam popularização junto às massas. O vampiro acabou, no processo de literarização, perdendo muitas de suas características macabras originais (o vampiro renascentista era mais um zumbi do que um humano) e ganhando contornos do romantismo, pendendo para (pasmem) uma espécie de “Lobo mau”, aquela criatura que sob um disfarce simpático oculta um monstro sedento por aquilo que te faz viver.

O vampiro do romantismo é de certo modo mais assustador do que o vampiro morto-vivo de antes. Nesta época o vampiro ganha ares muito humanos, e humanos são terríveis. E podem andar sob a luz do sol, embora fiquem sem seus poderes sobrenaturais. Hollywood poda esta característica e os impede definitivamente de andar sob o sol, para bem do medo nos filmes. E funcionou tanto que hoje muitos críticos do vampiro purpurina esquecem que o cinema inventou essa do sol-mata-vampiro.

O espaço dos vampiros é conquistado de vez com a publicação de Drácula, e metade do que se fala hoje para estabelecer o que deve ser um vampiro passa por ali. Só que Bram Stocker usa de tanta liberdade mítica para retratar o seu vampiro quanto qualquer autor atual. Não existe UM vampiro modelo.

Conforme passaram os anos, os vampiros se tornaram símbolos de um mal elegante, aristocrático – a burguesia e seu poder sobre os que trabalham? – e sedutor. De onde surge também o fascínio pela idéia de ser imortal, apesar do preço a ser pago, ser monstro para ser imortal. O vampiro é a deturpação da imortalidade da alma. Só que nos anos 1960 (sempre ali) a contestação alcançou também o terror, e o vampiro se torna também algo que vai contra o status quo. E uma autora então jovem absorve a idéia do vampiro como o jovem que vive a noite eternamente. Anne Rice cria o vampiro modernista, que se torna padrão em obras como o seu “Entrevista com o vampiro”, ou em filmes como “Os garotos perdidos” e “Quando chega a escuridão”.

Que filme é esse último, Ricardo? Meu exemplo de bom filme moderno. Poderia ser “30 dias de noite”, “Deixa ela entrar” (objeto desta postagem aqui: http://biocenico.blogspot.com/2009/12/deixa-ela-entrar-mesmo.html) ou “Vampiros, los muertos”, mas esse é desconhecido e merece aplausos.

O sucesso de “A hora do espanto” estimulou uma série de filmes adolescentes. A idéia moderna dos vampiros a lá Anne Rice fez com que fossem retratados como os monstros sedutores das mais diversas situações contemporâneas, desvencilhando de vez o mito dos cenários góticos, e um dos sub-subgêneros que surgiu foi o “vampire-western”, com vampiros que atacavam nos EUA caipiras. “Quando chega a escuridão” é deste subgênero. Não há glamour nestes vampiros. São criaturas sanguinárias, sobrenaturais até o osso, e exploram o gênero dos caninos longos até a última gota.

É dirigido pela então desconhecida esposa de James Cameron, Kathryn Bigelow, hoje oscarizada. Pegou amigos emprestados de filmes do então marido: Bill Paxton, Jenette Goldstein e Lance Henriksen (sensacionais). Mais, os fez atuar como criaturas medonhas, desprezíveis, psicóticas. Retrata o dilema do humano tornado sanguessuga sem frescura. Eles se entregam ao que são, embora saibam de seus tempos como humanos. Em certo momento, a vampira protagonista, que se apaixona por um humano (é, começou longe essa história) dispara ao olhar para as estrelas que quando a luz delas chegar à Terra, ela estará lá para ver. A idéia calou fundo no que penso de vampiros e me fez questionar a validade da imortalidade a esse extremo.

A primeira impressão é só a de que um daqueles grupos de caipiras ultraconservadores armados até os dentes agora tem uma desculpa para matar pessoas sem se preocupar com as balas da polícia, até você parar pra pensar no que acontece. As críticas sociais são equivalentes às de George Romero com seus zumbis consumidores de cérebros, a construção dos personagens milimetricamente pensada, a condução do suspense precisa como um cronômetro, e ao mesmo tempo, o ritmo que anima o filme é apimentado e os diálogos afiadíssimos.


“Quando chega a escuridão”


Enfim, dá para ser moderno, assustador, romântico, crítico, bem escrito e ainda por cima barato com um roteiro escrito por um vivo e não por uma morta-viva sem noção de psique ou construção de personagens. Já disseram muito sobre Crepúsculo, está na hora de direcionar as pessoas para os filmes de vampiro de verdade.

Esses troços são para dar medo, não é?

7.9.11

Não quero cachorro



Durante cinco anos trabalhei com Vigilância em Saúde na prefeitura de Sampa. Embora os dois terços desta área compostos de epidemiológica e sanitária fossem parte do que eu fazia, quase todo meu tempo era dedicado ao terço da vigilância ambiental, especialmente zoonoses. E das trocentas coisas inclusas em Vigilância em saúde ambiental, uma chama mais atenção quando eu falo desta época: Maus-tratos a animais.

Minha equipe tinha uma dupla dedicada a peneirar os casos de fofoca entre vizinhos, implicâncias com animais alheios etc dos casos que configuravam mesmo maus-tratos. E lá estava eu, a veterinária-braço-direito e/ou o outro biólogo-braço-esquerdo da equipe para ver o que acontecia.

Sempre era assustador.

Hoje, nas redes sociais que perfazem nossa vida virtual substituta das ruazinhas tranqüilas de vila, recebo dúzias de chamados para ações pelos cães, pelos gatinhos abandonados, pelos pobres irmãos que não podem se defender. E apoio todas estas ações. Só o que percebo em quase todas é uma certa ingenuidade. Não é uma questão de “se cada família adotar um, a gente se livra do problema”. Nem todos devem ou podem ter bicho. Nem todo bicho na rua foi abandonado. Nem toda boa ação pro bicho na rua é boa a longo prazo. Nem todo bicho pode ser salvo. Nem todo Pit Bull pode ter o comportamento recuperado.

É ponto pacífico que o problema nunca é o bicho, é sempre a pessoa que abandona, a que coloca comida para os da rua e estimula sua procriação, a que acumula animais no quintal achando que assim faz uma boa ação. Precisei fazer muitos que se diziam protetores arrumarem donos para metade de seus 18 cachorros por que isso simplesmente é contra a lei e contra a idéia de fazer o bem para eles. Não dá para ter 18 cachorros saudáveis e felizes num quintal comum de cidade grande: eles ficam estressados, incomodam com toda razão os vizinhos, cheira mal, gastam tempo demais do dono (que assim perde qualidade de vida) e são um foco sério de doenças para todos os bichos, humanos ou não, do entorno.

E eu ouvia coisas como:
- “Eles ficam melhor aqui do que na rua” (não, não viviam quase nunca, e na rua eles não tinham comida à vontade para fazer dúzias de filhotes);
- “Por que a prefeitura não faz campanha de castração em massa?” (custa muito caro, e se alguém diz que está gastando os parcos recursos que realmente chegam na ponta da hierarquia para cuidar de bicho, a sociedade surta. Agora, existem projetos nesse sentido funcionando, só não se pode obrigar ninguém a castrar seu bicho);
- “E vacinação pública contra cinomose?” (o poder público tem que se preocupar com a saúde das pessoas, não a dos cães. O dono é quem deve arcar com problemas dos seus bichos);
- “Ah, você devia ter tirado todos os cachorros dela!” (não,não devia. Eles estão bem em menor número agora OU eles podem todos ficar pois são bem tratados OU ela ia arrumar o dobro se eu desse esse baque psicológico nela);
- “Multa logo ele!” (adiantaria? E é melhor fazer a pessoa se convencer de que você quer resolver o problema COM ela, ainda que demore um pouco mais, e não angariar grana para a prefeitura);
- “Eu já tinha essa boiada aqui anos antes desse bairro aparecer” (é, BOIADA em São Paulo. Lidei com duas na pequena subprefeitura que eu cuidava. E de fato eles estavam lá antes dos bairros. NÃO é contra a lei ter bovinos em área urbana, mas porcos sim);
- “Eu tenho medo do meu cachorro. Vai vacinar ele lá em casa para mim?” (é contra a lei ir vacinar em casa ou levar a vacina. E ter medo do próprio cachorro é sinal de que você não devia ter um);
- “Minha filha deficiente gosta dos 48 gatos dela” (os gatos moram bem num quarto de 3x5 m? Se ela adoecer por isso a culpa é dos gatos?);

... e por aí vai. Conto qualquer história desejada numa mesa de bar. Em nenhum momento falei dos cachorros soltos pelos donos que vão sair de férias, que se cansam deles depois de adultos e com personalidade, dos gatos torturados por futuros assassinos seriais, das promessas de campanha dos vereadores “verdes”. Zilhões de outras questões resumidas no fato de que a sociedade brasileira não sabe lidar com animais de estimação, muito menos (outro assunto, de quem já cuidou de 148 saguis e 52 papagaios resgatados de tráfico) com animais silvestres “criados” em casa.

O problema, para variar, não é nossa exclusividade. Basta assistir “O encantador de cachorros”, “Distrito animal”, “Animais em perigo” e vários outros para notar que nem mesmo é incomum lá nos “estrangêro” (eu morria de inveja dos recursos do pessoal do “Distrito...”). A TV americana conseguiu capitalizar as investigações de maus tratos e usar isso como ferramenta de conscientização. As parcas tentativas de fazer isso aqui no Brasil esbarram na mesma ingenuidade das postagens pedindo para ajudar o cachorrinho: Batem na trave do piegas, não tocam de fato as pessoas e nem as assustam, e não entram no gol da conscientização.

Para finalizar, eu sou a favor de vender cachorros já castrados, chipados, com manual de instrução e uma taxa que seja usada para projetos de castração pública. De preferência, promover a adoção de animais resgatados ao invés da venda. Perdoem-me os radicais, mas impedir o sacrifício de animais pode ser um tiro no pé em caso de epidemias, situações de risco à integridade da população ou de multiplicação absurda que se vê em certos lugares. Quem abandona cachorro ou gato na rua devia ser preso por uns cinco anos. E penso que já tem gente o bastante pensando nos domésticos para me deixar livre para pensar nos silvestres.

Hoje, antes de dormir, afague seus bichos. Eles precisam de você.

31.7.11

The Winehouse keeps cool the drinks




Andei muito pessimista com relação aos rumos da música até alguns anos atrás. De repente, notei que eu só estava olhando para o lado errado. A coisa não está pior do que estava na década de 1980 ou 1990, por exemplo. Porém multifacetado e disperso como está, o mundo musical fica mais difícil de decifrar superficialmente: O Metal está bem, obrigado. O jazz toca em rádios populares! O Soul ganha uma noite só para ele no Rock’n’Rio. Mas para ver o que há de bom é preciso arrastar mais lixo para os lados do que antes, simplesmente por que hoje há muito mais produção do que antes. Caberia saber se a quantidade de coisa boa segue a mesma proporção que seguia em, sei lá, 1979 ou 1991. Só não quero falar de estatística.
Toca uma da porralouca mor dos anos 2000, quando ela ainda tinha carne sobre o pó. “Stronger than me” é uma das boas coisas que a Amy criou quando ainda era dona de si mesma.
Este texto germinou na minha cabeça enquanto eu preparava uma coletânea das melhores vozes femininas desde 1940 para uma das melhores vozes femininas de hoje. Antes disso, uma aprendiz já havia postado em uma rede social um clipe da Adele, outra da nova leva jazzística atual que não faria feio na Chicago dos anos 1940 (e espantou-me alguém de 18 anos postando isso em seu mural ao lado de Lady Gaga ou Rihanna) e um estagiário, há um mês, cantarolava Joss Stone pelos corredores. Sem falar no mar de gente assistindo Hermeto Paschoal na Virada cultural. Hermeto Paschoal, o bruxo incompreensível, é pop!

O assunto cresceu e quando a idéia já estava maturada, com as primeiras linhas no papel, veio a notícia da morte de Amy Winehouse. E se antes o objetivo destas linhas era destacar um bom momento de um gênero que andava elitizado demais, agora é preciso pensar no que pode acontecer com a ida de sei ícone atual mais marcante por causas ainda indeterminadas.

Será como o Grunge, que morreu junto ao Cobain, ou como o Rock Clássico, que expandiu-se depois que Buddy Holly se foi?

E indeterminadas sim, pois não repetir aquela revista semanal conservadora que colocou a Cássia Eller como vítima de overdose na capa e jamais pediu desculpas depois que a autópsia revelou que ela estava limpa. Ah, mas é provável que Amy tenha morrido de overdose? Sim, é, assim como é provável que algum executivo de gravadora tenha mandado matar uma artista problemática na simbólica idade de 27 anos para lucrar com seus restos ou ela tenha morrido em uma briga com o namorado.

Pouca antes da afundada que nos deu a onda do forró universitário, surgiu uma teoria: a música está tão ruim que agora só subindo de nível. Claro que a coisa piorou muito depois (vieram novas boy bandas, o funk carioca, sertanojo universiotário, os gangsta de boutique, o emo e o happy rock) e agora realmente parece não haver lugar mais para baixo, e a coisa tende a ir para a única direção possível: para cima.

O novo jazz radiofônico é repleto de levadas pop, soma guitarras aos metais típicos, é cheio de “fulana featuring ciclano” e incomoda os puristas e os acostumados às complexidades harmônicas dos experimentalistas. E continua sendo inegavelmente jazz, o gênero musical que, na prática, abarca coisas tão diferentes que nem deveria ser chamado de gênero musical.

Uma das burocráticas Kate Melua, Norah Jones ou a Joss Stone vão fazer uma reviravolta mágica e tomar o topo agora? Será que Adele vai fazer um megaregime e tocar de umbigo de fora? E como saber se ela foi só mais uma vítima da indústria ou se ela só fez regime por desejar isso há séculos e agora ter como pagar um bom nutricionista e cozinheiros? Vão arrumar uma substituta polêmica na miríade de imitadoras de Amy que surgiu? Vai surgir alguém novo? O novo vai ficar do lado do Mississipi ou de Paris? Chicago ou Londres? Hermeto Paschoal ou Ivan Lins?

O diferencial não é nenhuma destas coisas, e pode ser muito bem ilustrado em uma cena que foi ao ar num tributo de 2005 a Janis Joplin, a blueseira que pegou o Rock e lhe deu whisky para mamar. Joss Stone e Melissa Etheridge subiram ao palco para cantarem juntas. Lado a lado, a belíssima Stone começou com uma versão tecnicamente perfeita e fria de “Cry baby”, e chamou uma careca, linda e rouca (é, quimio tem efeitos colaterais) Melissa para dividirem “Piece of my Heart”. A façanha está aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ef-f-l2Pbn8 .

Não é preciso ser gênio para adivinhar que a técnica ficou para trás da sujeira emocional e gritada. É isso que fez Amy grande. Ela não foi a melhor cantora, a melhor voz, a melhor compositora (e compunha muito bem, coisa rara hoje em dia) ou a melhor sobrevivente. Mas foi a que se esgarçou frente às platéias, que chorou, que cantou mal, que destruiu, que fez força e compôs com alma. Ela trouxe a dor e o deleite que fazem do jazz O Jazz, e os doutores da indústria fonográfica jamais saberão como reproduzir.

Se você quer sabe de onde vem a próxima grande coisa, olha na lixeira. Aquilo que traz o novo e traz sangue para o fadigado quase sempre sai de onde o sofrimento faz a pele endurecer, a expressão se sofisticar, a habilidade crescer, a técnica submeter-se ao ritmo... e as notas saírem carregando pedaços da dor e do prazer de quem as faz.

23.6.11

O descontentamento procura suas vozes, quem se candidata?



Ontem assisti um “cover” de Raul Seixas em um bar rock’n’roll aqui perto de casa. Já vi boas bandas tocando por lá, públicos razoáveis, mas nada que se comparasse ao volume de pessoas gritando as letras e erguendo seus copos aos gritos satíricos de “Toca Raul”. Estava lotado, simplesmente, de fãs.

Claro, eu me incluo. Cantei “Gita” com a emoção de sempre, pedi “Novo Aeon” (e não fui atendido, não é uma música que qualquer um toque e/ou saiba fazer aquele finalzinho rap) e dei risada com “Aluga-se”.

É óbvio que a moda é cíclica, e a música, como fenômeno de expressão, igualmente se repete de tempos em tempos, e acredito que isso tem a ver com a sequência de adolescência após adolescência dos públicos. Sim, montes de pessoas que eram bebês, ou mesmo nem haviam nascido quando Raul Seixas morreu, estavam lá cantando e celebrando a sociedade alternativa. São minoria de sua geração, são, mas existem e não são poucos. Aqueles que cresceram escutando só Strokes ou White Stripes como o máximo de rebeldia se encantam com a mensagem genuinamente raivosa contra o mundo do Raul (eles enxergam o Nirvana como eu enxergava o Led Zepellin, algo lá no fundo da história).

Logo após a morte do Raulzito, na semana do eclipse (para quem não lembra: na música “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, ele cantava que só o entenderiam quando chegasse o dia do eclipse. Pois bem, Raul morreu 2 dias depois de um eclipse total do Sol), ele foi criticado pelo rumo péssimo de sua vida nos anos finais, pelos shows que não terminou de tão bêbado que estava, pela parceria duvidosa com Marcelo Nova e por aí vai. Quatro anos depois, Raul tinha mais fãs do que jamais tivera quando vivo, e essa onda se espalhou de São Thomé das Letras à China. Aí surgiu o famoso grito de “Toca Raul”.

Quando o novo milênio chegou, Raul era ultrapassado, datado, chato. Os fãs se enfiaram no seu nicho, e bandas se recusavam a tocar suas músicas nos bares da vida. Um mês atrás, resolvi dar uma nova chance ao Raul e fui lá desenterrar a pasta de músicas dele do computador.

E estava tudo lá. A clareza crítica, a ironia, a afiada análise social, a filosofia adequadamente profunda para os propósitos de uma música para todos, o tino de fazer música comercial sem ser raso, o desprezo pela alienação, o humor indescritível, a grandeza espiritual, o amor pelo viver livre. O cara foi muito bom no que fez, e quando olhei ao redor, vi que eu não era o único a revisar a atualidade das ideias anticaretice do maluco beleza.

Agora, passados mais de vinte anos desde sua morte, ganha um novo fôlego e público, que sintoniza sua revolta contra a burrice coletiva, a mentalidade politicamente incorreta que não tem sequer a coragem de se assumir fascista, a vida reacionária da classe média agonizante de Higienópolis, a face careta mesmo do mundo. Está mais adequado ao mundo de hoje que seu ex-parceiro, Paulo Coelho.

Senhor Seixas, o mundo evoluiu inegavelmente, não pode impedir sua voz e admite que não pode mais discriminar as pessoas por serem como são, não é mais dividido em duas superpotências, a informação corre para cima e para abaixo em bits, e as grandes gravadoras agonizam; só infelizmente continua merecendo as mesmas críticas hoje que merecia na sua época para aprofundar nesta evolução.

Só espero que suas palavras não tragam a revolução datada que seus fãs adorariam ver.

14.6.11

E onde estão as crianças?




Lá na era cenozóica, eu escrevi com alguns amigos uma lisérgica história envolvendo tudo que desejávamos detonar e colocamos a tarefa na mão de um grupo de antiheróis quadrinísticos. Basicamente, a coisa toda era sobre uma MegaCorporação de eletrônicos(!) que roubava crianças no terceiro mundo (!) para vender seus órgãos(!) embora dissesse para sua aliada Igreja fundamentalista norteamericana(!) que ajudava-as a arrumar casa em famílias abastadas e ambas conspiravam(!) para criarem um exército ciborgue ultrareligioso(!) às custas disso tudo.

Nem é preciso falar que a suspensão de crença necessária para engolir isso é quase tão grande quanto a que precisamos para assistir um filme de ação blockbuster. Claro que enfiamos diálogos ferinos, protagonistas absurdos e muitas explosões. Tudo isso para extravasar artisticamente a revolta com o mundo.

No meio dessa massa toda, estava um momento histórico onde o mundo todo tinha algo de errado. E pasmem, ainda estamos nele! E eis que me espanta ver que numa determinada entrevista um membro de uma banda da qual desejaria nunca ter ouvido nem mesmo falar de emocoloridobreganejorock (obviamente não darei a eles a honra de terem seu nome aqui) foi questionado por que raios todas as músicas eram sobre romance, balada e sei lá mais o quê. A criatura responde que não há mais nada do que reclamar então eles fazem só isso.

Mais nada do que reclamar? Em que cúpula de cristal nos picos de Higienópolis ou Ipanema este ser nasceu e foi mantido toda sua vida? Que jornais róseos ele leu na vida? Que televisão com censura dos pais ele pode assistir? Que estradas de tijolos amarelos ele usa para chegar onde se apresenta? Que palcos de diamante e plateia de burgueses à francesa tem nesses shows? Se arte é expressão, o que expressa alguém tão insensível ao que o cerca?

Qualquer ser humano que tenha um único dos 5 sentidos encontra facilmente algo do que reclamar pelo que acontece no mundo. Minha historieta adolescente falava de impunidade dos grandes poderes econômicos, da falta de laicidade dos estados, do fundamentalismo, da exploração dos países terceiromundistas, do abuso infantil, do tráfico humano, da falta de senso de justiça, do uso ilegal e ganancioso da tecnologia, do preconceito, do crime organizado e de pelo menos uns mil assuntos que ganhavam espetada nos diálogos entre a personagem que tentava ir pela lei e a que preferiria tudo feito no esquema olho por olho.

Basicamente, as pessoas esperam por um novo movimento hippie, um novo punk ou revolução francesa. E não metem as caras para mudar nada. O problema é que chegamos no momento onde todo mundo, repito, TODO MUNDO sabe o que é certo e o que é errado. Essencialmente, a humanidade toda sabe que devemos respeitar tudo que tem em volta como respeitamos a nós mesmos. Isso significa que abuso, exploração, preconceito, desrespeito aos direitos das gerações futuras, esgotamente de recursos naturais, desinteresse pelo bem estar alheio e várias outras coisas estão subentendidas. Pela primeira vez nos últimos 200000 anos, é possível sonhar com uma constituição mundial. John Lennon sorri na tumba.

E portanto, agora é a hora de praticar isso, e não esperar grandes impactos externos para nos obrigar. Quando as pessoas reclamam dizendo que o mundo está passivo, é por que não olham para o que está rolando nos países árabes. A primavera árabe simboliza a vez deles colocarem para si mesmos aquilo que boa parte do mundo conquistou na revolução francesa e na carta dos direitos humanos.

Aqui no seu país onde um imbecil diz que não tem nada do que reclamar, é hora de fazer seu papel de indivíduo e botar as mãos na massa sozinho, cobrando aquele em que você votou, reciclando seu lixo, respeitando o direito do cadeirante, assumindo que fez asneira no trânsito ao invés de tentar subornar o guarda... enfim, parando de esperar que alguma revolução venha te ensinar o que deve ou não fazer.

Quem espera que algo de fora lhe diga o que é o certo equivale àquela parcela do povo alemão recebendo Hitler como salvador da pátria e ignorando seus maiores pensadores apontando-o como o monstro que era. Os pensadores, coitados, ou fugiram do país ou foram mortos. O povo que achava que não analisou a coisa por si mesmo até hoje convive com as cicatrizes daquilo.

Exagero? O número de vezes em que você ouviu "ah, é Brasil, é assim mesmo" é o quanto você foi exposto ao conformismo explícito. E um milésimo do quanto foi ao implícito.

14.3.11

Godzilla, a Síndrome da China e Honra.

Para ler ao som de REM:
It's The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)
That's great, it starts with an earthquake...



Quanto esta música foi lançada, o mundo acabara de passar por mais um de seus fins, o dos anos 1980, dos muitos desde a guerra fria (leia o post sobre isso em: http://biocenico.blogspot.com/2009/06/o-fim-do-mundo-ja-aconteceu-e-nao-nos.html ). O interessante é que agora a música soou friamente profética conforme o atual fim do mundo, o de 2012, se aproxima.

Um clássico filme de 1979 chamado "A síndrome da China" em que a repórter com pretensões investigativas de Jane Fonda (ela, a engajada) investiga com seu cameraman rebelde-anos-70 (Michael Douglas em seu primeiro bom papel) as falcatruas que uma empresa fez para fraudar a fiscalização de segurança de uma usina nuclear. Um técnico do lugar, magistralmente encarnado por Jack Lemmon, resolve abrir o bico antes que ocorra a síndrome da China, isto é, o derretimento do núcleo atômico da usina que o faria derreter a crosta terrestre até chegar à China.

Como Chernobil nos mostrou anos depois, quando um núcleo de usina desanda, a coisa toda voa, e não afunda. Alguém viu pedaços de teto de usina voando no Japão?

Ok, todos falam agora do maremoto e do terremoto, fazer o quê, isso acontece (embora existam teóricos que digam que o degelo dos pólos está alterando a distribuição de peso nas placas tectônicas, o que eu acho exagero). E ao fundo, fala-se do risco de explosão de reatores nucleares que abastecem o Japão. Mas por que usar energia nuclear no Japão? Não tem grandes rios represáveis, não tem grandes fontes de combustíveis fósseis, não está disponível ainda tecnologia para criar energia em grande escala por fontes como energia do mar ou geotérmica. E claro, como país mais traumatizado com o poder do átomo, o Japão precisa conhecer este monstro.

E traumatizado como é desde 1945, o poder da terceira maior economia do mundo (até a China ultrapassá-lo dia desses, a segunda) não foi suficiente para impedir que a trama do filme se repetisse. Segundo reportagem veiculada no Estadão de 13/03/11, a empresa que administra a Usina atualmente vigiada por repórteres do mundo todo, a maior empresa de energia do Japão, recebeu nada mais nada menos do que VINTE E NOVE CASOS de alterações em procedimentos de segurança, fora ACUSAÇÕES DE FALSIFICAÇÃO e ADULTERAÇÃO de dados.

A usina de Fukushima Daiichi já expirou sua validade (aliás, agora chegou o tempo em que quase todas as usinas nucleares do mundo já são prédios com décadas de uso constante sob condições extremas) mas alguém deu a ela mais dez anos de lambuja. Quem foi que revalidou esse prédio se ele foi reprovado na calibração? Claro, colocar a usina em um lugar vulnerável a tsunami e terremoto só foram a cereja do bolo.

Nos anos 1950, as explosões nucleares de Hiroshima e Nagazaki afetaram um lagarto e o transformaram no rei dos monstros. Godzilla encarnou os temores nucleares do Japão como uma força absolutamente irracional que destruía sem remorso "a cultura mais tradicional do mundo", nas palavras de um certo carcaju de adamantium.

E aí vem um executivo a fim de lucro cuidando da coisa mais perigosa do mundo como se fosse a lojinha de saquê do avô dele e falsifica laudos de segurança. Godzilla nasce do poder irracional do Iene, pisa impiedosa e destrutivamente na tradição de honra e senso de cidadania que fizeram do Japão a força que ele é hoje.

Agora, Godzilla de terno e gravata arrisca tornar um cataclismo natural de pesadelo em um cataclismo de erro humano onde a radiação fará o papel de completar os espaços deixados em branco pelo terremoto no obituário. E claro, Godzilla nunca cogitou cometer haraquiri quando traiu a alma de seu país. O monstro irracional não tem honra que possa ser perdida.

Talvez a usina tivesse os mesmos danos por conta da força do abalo? Talvez. Mas se a usina tivesse sido desativada quando chegou sua hora, anos atrás, e eu pudesse confiar nos laudos de segurança e nos dados sobre ela, seria mais fácil aceitar isso.


Obs: Uma versão mais recente (e americana) recriou o monstro em 1998 quando a França fez testes nucleares de superfície no atol de Mururoa alguns anos antes. E o visual do bicho ficou genial. E ano que vem, quando o mundo estiver prestes a acabar, vai sair mais um filme. E pelo visto, o horror nuclear que o originará é o de um tempo muito recente...

1.3.11

Elektra

Pois é, o blog volta à vida. Mas antes de dedicar-me a assuntos mais sérios, um pequeno interlúdio de fã.



Em algum lugar na minha busca incessante por quadrinhos interessantes, e já satisfeito de Carl Barks, Hergé e Maurício de Souza, os quadrinhos mais vendidos do mundo bateram à minha porta.

Na verdade foi culpa de um filme do Batman com uma publicidade absurda e uma imensa curiosidade mórbida adolescente por um mundo que, nas páginas, vinha estampado “leitura para adultos”. Eu tinha lá meus catorze, e achei tudo aquilo sinistro, sombrio, realista. Um mundo onde as pessoas morriam e vilões eram terrivelmente assustadores.

Claro que eu li os grandes clássicos do morcegão, e tremi de medo do Coringa enfiando um tiro na coluna da Batgirl para provar sua teoria. E tremi de arrepio quando o Batman meteu a mão na cara do Super-homem que se tornara um joguete nas mãos do poder constituído. O grande astro desta era do morcego era Frank Miller, e logo em seguida (eu ainda não lera as obras supremas dele) eu admirava um tal de Alan Moore.

E Frank tinha uma carta na manga. Alguns amigos meus á estavam versados no cara graças a outro personagem que ele transformou em um ícone, o Demolidor, da Marvel. Eu não era, e até hoje não sou, um grande admirador do jeito Marvel de quadrinhos, com raras exceções. Mas Miller era Miller, e li tudo que pude do Homem sem Medo, Matt Murdock, sob o disfarce do demônio ousado.

Até que caiu em minhas mãos a história em que ele reencontra com uma ex-namorada que se tornou uma assassina de aluguel. Elektra.

Anos depois soube que foi a primeira história que Miller roteirizou para a Marvel. Logo que teve a oportunidade, ele jogou o novaiorquino até o osso Matt Murdock em um mundo de ninjas, artes marciais e misticismo arcano oriental. E colocou a bomba envolvida e uma mulher de traços musculosos, poucas curvas e cara de que castraria qualquer um que tentasse alguma graça com ela. O oposto absoluto de todas as mulheres já retratadas em quadrinhos até ali.

Elektra é a antítese da Mulher Maravilha ou das X-girls, de Lois Lane ou Barbarella. Depois de ler tudo que Miller fez com ela nas histórias do Demolidor, sua vida e morte, caiu em minhas mãos a síntese do que aquela personagem queria dizer ao mundo.

Em “Elektra: Assassina”, toda aquela podridão de mundo escondida e atenuada nas outras coisas com advertência de “leitura para adultos” desaba com o peso de um Sartre de porre e um Nieztsche virado no cão. Sangue é o que menos chama a atenção. Temos traição, complexos freudianos, manipulação, conflitos políticos, um mal absoluto controlando o horror nuclear, hospícios cucarachas, estuprador virando herói, hippie virando monstro, maionese podre e uma ninja absolutamente assassina sem nenhuma hesitação em chacinar pessoas que estão do lado do bem para atingir seu objetivo de salvar o mundo por vingança.

E de repente, o que falta no mundo é uma pitada de Elektra. O politicamente correto transformou essa criatura sem piedade em uma coisa insossa interpretada pela boneca-de-lábios-botox Jennifer Garner.

Posteriormente, Miller a matou de vez (em “Elektra vive”) e foi se dedicar a petardos como “Sin City”, mas nunca superou-se como fez com “assassina”. Daí os executivos da Marvel a ressuscitaram ao melhor estilo X-men e deram-lhe curvas saborosas, preceitos morais caretas e arquiinimigos superpoderosos convencionais.

Mas até hoje, Elektra é a maior personagem feminina já criada, e infelizmente foi esquecida atrás de uma versão sua de peitos enormes e profundidade de um pires.

Volte, Elektra, e mate os executivos que fizeram isso com você.