14.3.11

Godzilla, a Síndrome da China e Honra.

Para ler ao som de REM:
It's The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)
That's great, it starts with an earthquake...



Quanto esta música foi lançada, o mundo acabara de passar por mais um de seus fins, o dos anos 1980, dos muitos desde a guerra fria (leia o post sobre isso em: http://biocenico.blogspot.com/2009/06/o-fim-do-mundo-ja-aconteceu-e-nao-nos.html ). O interessante é que agora a música soou friamente profética conforme o atual fim do mundo, o de 2012, se aproxima.

Um clássico filme de 1979 chamado "A síndrome da China" em que a repórter com pretensões investigativas de Jane Fonda (ela, a engajada) investiga com seu cameraman rebelde-anos-70 (Michael Douglas em seu primeiro bom papel) as falcatruas que uma empresa fez para fraudar a fiscalização de segurança de uma usina nuclear. Um técnico do lugar, magistralmente encarnado por Jack Lemmon, resolve abrir o bico antes que ocorra a síndrome da China, isto é, o derretimento do núcleo atômico da usina que o faria derreter a crosta terrestre até chegar à China.

Como Chernobil nos mostrou anos depois, quando um núcleo de usina desanda, a coisa toda voa, e não afunda. Alguém viu pedaços de teto de usina voando no Japão?

Ok, todos falam agora do maremoto e do terremoto, fazer o quê, isso acontece (embora existam teóricos que digam que o degelo dos pólos está alterando a distribuição de peso nas placas tectônicas, o que eu acho exagero). E ao fundo, fala-se do risco de explosão de reatores nucleares que abastecem o Japão. Mas por que usar energia nuclear no Japão? Não tem grandes rios represáveis, não tem grandes fontes de combustíveis fósseis, não está disponível ainda tecnologia para criar energia em grande escala por fontes como energia do mar ou geotérmica. E claro, como país mais traumatizado com o poder do átomo, o Japão precisa conhecer este monstro.

E traumatizado como é desde 1945, o poder da terceira maior economia do mundo (até a China ultrapassá-lo dia desses, a segunda) não foi suficiente para impedir que a trama do filme se repetisse. Segundo reportagem veiculada no Estadão de 13/03/11, a empresa que administra a Usina atualmente vigiada por repórteres do mundo todo, a maior empresa de energia do Japão, recebeu nada mais nada menos do que VINTE E NOVE CASOS de alterações em procedimentos de segurança, fora ACUSAÇÕES DE FALSIFICAÇÃO e ADULTERAÇÃO de dados.

A usina de Fukushima Daiichi já expirou sua validade (aliás, agora chegou o tempo em que quase todas as usinas nucleares do mundo já são prédios com décadas de uso constante sob condições extremas) mas alguém deu a ela mais dez anos de lambuja. Quem foi que revalidou esse prédio se ele foi reprovado na calibração? Claro, colocar a usina em um lugar vulnerável a tsunami e terremoto só foram a cereja do bolo.

Nos anos 1950, as explosões nucleares de Hiroshima e Nagazaki afetaram um lagarto e o transformaram no rei dos monstros. Godzilla encarnou os temores nucleares do Japão como uma força absolutamente irracional que destruía sem remorso "a cultura mais tradicional do mundo", nas palavras de um certo carcaju de adamantium.

E aí vem um executivo a fim de lucro cuidando da coisa mais perigosa do mundo como se fosse a lojinha de saquê do avô dele e falsifica laudos de segurança. Godzilla nasce do poder irracional do Iene, pisa impiedosa e destrutivamente na tradição de honra e senso de cidadania que fizeram do Japão a força que ele é hoje.

Agora, Godzilla de terno e gravata arrisca tornar um cataclismo natural de pesadelo em um cataclismo de erro humano onde a radiação fará o papel de completar os espaços deixados em branco pelo terremoto no obituário. E claro, Godzilla nunca cogitou cometer haraquiri quando traiu a alma de seu país. O monstro irracional não tem honra que possa ser perdida.

Talvez a usina tivesse os mesmos danos por conta da força do abalo? Talvez. Mas se a usina tivesse sido desativada quando chegou sua hora, anos atrás, e eu pudesse confiar nos laudos de segurança e nos dados sobre ela, seria mais fácil aceitar isso.


Obs: Uma versão mais recente (e americana) recriou o monstro em 1998 quando a França fez testes nucleares de superfície no atol de Mururoa alguns anos antes. E o visual do bicho ficou genial. E ano que vem, quando o mundo estiver prestes a acabar, vai sair mais um filme. E pelo visto, o horror nuclear que o originará é o de um tempo muito recente...

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