27.5.10

Lembrar é viver.



Anteontem, perdi duas horas da minha vida assistindo a regravação de “Fúria de titãs”, mais um filme caríssimo cujo custo poderia ter alimentado a Somália por alguns dias e que não será lembrado nem mesmo no mês que vem.

Para quem esteve fora da Terra nos últimos decênios, “Fúria de Titãs” é um clássico da sessão da tarde que mostra, com alguma liberdade poética para a mitologia, a saga de Perseu para conseguir a mais perigosa arma já imaginada, a cabeça da Medusa, a fim de evitar que a cidade de sua amada Andrômeda seja destruída pelo Kraken (no mito, é Cetus. Kraken é um nome de monstro do mar “emprestado” da mitologia viking. Imagino que como a palavra “Cetus” originou a moderna alcunha científica “Cetáceo” para o grupo das baleias e golfinhos ficava muito antipático chamar um monstro por esse nome hoje em dia).

Perseu é um herói mítico perfeito no filme. Decidido, bonitão, ético, inteligente, consciente de sua responsabilidade e corajoso até o último fio de cabelo. O mito trata do desrespeito dos homens para com os Deuses, retratados com emoções e motivações bem humanas. Um elenco divino encabeçado por verdadeiras divindades do cinema: Zeus é interpretado por ninguém menos do que Sir Laurence Olivier. Hera, pela belíssima senhora do teatro Claire Bloom. Tétis, pela genial Maggie Smith e Afrodite por... Ursula Andress! Aos 44 anos, Ursula ainda era a atriz mais próxima de um ideal Afroditeano de beleza que vocês podem imaginar.

O centro do filme é o fato de que um filho cruel e mimado (Calibos) pede a sua Mãe-Deusa que o vingue após ter sido humilhado por Perseu. Todo o conflito se desenrola disso. A cidade onde vive Andrômeda cairá pois Perseu, sendo protegido de Zeus, não pode ser diretamente atacado. Tem seus pepinos, como a coruja de metal encaixada acréscimo fofo, a presença do Pégaso vindo de outra lenda ou o visual esquisito do Kraken, mas em compensação tem detalhes maravilhosos como a homenagem ao teatro grego delicada e poderosamente feita pelo personagem de Burgess Meredith, o filósofo que ensina Perseu a pensar.

O filme atual, que ainda por cima foi feito de forma convencional e depois foi transformado para a moda do 3D com resultados horríveis, muda toda a questão mítica subjacente. Os deuses (com minúscula) dependem das orações dos mortais para terem poder (o conceito de egrégora é manchado aqui com tintas primárias). Um deus invejoso, Hades, do poder de seu irmão Zeus manipula tudo para que os mortais temam a ele e assim ele fique poderoso o bastante para dominar o Olimpo. Detalhe? O diretor do filme se declarou fã do desenho “Cavaleiros do Zodíaco”! Olha só que credencial ele tem para falar de mitologia grega. Os deuses, de fato, parecem estar sempre vestidos com uma armadura comprada numa lojinha de 1,99. Nem mesmo as armaduras dos cavaleiros eram tão pouco imponentes.

Hades virou vilão depois dos tais cavaleiros, do famigerado desenho “Hércules” que a Disney cometeu enquanto afundava e por que a cabeça cristã-maniqueísta quer que o Deus das profundezas e do reino dos mortos seja um equivalente ao Diabo.
O problema é que as pessoas não entendem que a divisão do reino dos céus, dos mares e do subsolo entre Zeus, Poseidon e Hades nunca foi ruim para nenhum deles, e que ser o Deus dos mortos não é uma desonra, nem Hades é um Deus adepto de abuso de poder divino (quesito no qual Zeus extrapola inúmeras vezes e nem por isso é demonizado). Aliás, Hades é um Deus apaixonado e fiel ao seu amor por Perséfone, como prova o fato de termos invernos todos os anos.

O que fica no filme? A velha babaquice americana contra a opressão dos poderosos, da livre-iniciativa, do poder do indivíduo e por aí vai. Aqui, os mimados são recompensados! Perseu é um macaco treinado (o Sam Worthington vai ter que ralar para apagar esse papel do currículo) arrastado pelas situações. As cenas não tem conexão. Os ingredientes colocados lá só para dar alguma cor no filme não funcionam (o que são aqueles soldados xerocados de “300 de Esparta”, a presença de Io num mito que não tem nada a ver com ela, os tais Djins caídos de pára-quedas da mitologia árabe e que não fazem nada ou a dupla de caçadores?).

E o pior: o monstro. Metade do filme é gasto para criar a expectativa de que o Kraken é a encarnação da destruição. Quando ele vai surgir, são horas até ele aparecer por inteiro. Se o filme antigo causa risos hoje com sua técnica de stop-motion (que ainda assim fez uma Medusa realmente apavorante e não aquela lambisgóia modernosa) pelo menos eles eram honestos com o monstro. O atual vai surgindo, primeiro tentáculos, depois pinças, cascas e então...! Uma tartaruga gigante dentuça! Eu quase morri de rir. O desenhista de produção devia ser enforcado por quem o pagou.

Moral da história. Peguem o pirata para ver e morram de rir. Baixem pela internet, mas nunca, em hipótese alguma, dêem algum lucro pra quem fez aquele filme. E vão assistir o antigo, que acaba de sair em DVD em uma nova edição caprichada, que vocês devem comprar legalmente na sua loja preferida. Esse merece seu dinheiro.