2.12.06

FILMES PERFEITOS - OS ANOS OITENTA

Muito já se falou acerca da pasteurização do cinema que se iniciou quando George Lucas lançou “Guerra nas estrelas”. Tentam colocá-lo em uma onda que se iniciou em “O poderoso chefão” e que vem até os dias de hoje de filmes que faturam horrores e muitas vezes não dizem nada. Claro que os dois exemplares citados acima são ricos em leituras e funcionam tanto como arrasa-quarteirões como também como cinema.

Ms houve um momento em que o cinema entendeu que podia contar as histórias que todos queriam sem se preocupar em parecer burro demais ou agradar a academia. São aqueles no limiar entre a melhor coisa para se fazer como trabalho de filosofia e melhor coisa para se ver na sessão da tarde. Os filmes perfeitos.

Muita gente vai discordar, apelar para a velha Hollywood e evocar os nomes sagrados do cinema sério, e provavelmente ninguém se dá conta dos inúmeros significados inseridos neles. Mas vamos á lista e vocês entenderão de quem estou falando. Enquanto isso, torçamos para que a bilheteria deixe de ser tão predominante e voltem a arriscar alguns milhõezinhos de dólares (nem são tantos, nada de novos “Titanics”) para voltar a ver filmes como estes nas telonas. E não liguem: não há ordem. Não há hierarquia na perfeição!

“Curtindo a vida adoidado” : Alguém mais acha que Ferris Bueller é o novo Prometeu? Ninguém nunca sonhou em dirigir uma Ferrari com o melhor amigo e a Mia Sara do lado e tocar uma zona na cidade inteira? Nada é melhor que isso para sair da deprê! E ainda tem a glória em música de reapresentar “Twist and Shout” a toda uma geração.

“Indiana Jones e o templo da perdição” e “Os caçadores da arca perdida” : Começa com a Música que remete qualquer um a outro universo. A obra prima de John Willians toca imediatamente nos ouvidos quando ouvimos a palavra “aventura”. Injeção de adrenalina com aula de mitologia e história oculta, muito antes dos passos de pato do “Código da Vinci”. Onde aprendemos o que é a saga do herói mítico. O terceiro filme (ou colocado? “A última cruzada”) até se esforça, mas não chega aos pés dos primeiros. Se aventura tem nome, todos aprenderam ao ver Harrison Ford pela primeira vez a estalar um chicote.

“O clube dos cinco” : Também conhecido como “o melhor jeito de fazer um filme custando uma bagatela com um bando de amigos, uma pusta idéia na cabeça e metade dos pesadelos, sonhos e visões de mundo da adolescência universal”. Além de tudo isso, tem a Música mais gritável no topo de uma montanha de peito nu na ventania de todos os tempos: “Don´t you (forget about me)”.

“Aliens, o resgate” : O melhor filme de ação de todos os tempos? Talvez. Uma criatura biologicamente bem bolada, horrivelmente verossímil, uma mãe protegendo a cria de cada lado, o padrão de personagens de filme de ação copiado por todos a partir de então (o covarde, o burocrata traidor, o comandante durão, a durona, o técnico, o legal...), e uma inspiradíssima Sigourney Weaver arrastando o elenco nas costas. Tem ainda o mérito de uma rara continuação que não envergonha o original. Além, é claro, da mais fria e tensa Música tema para um filme. Igualmente copiada à exaustão.

“Footloose” : A síntese do espírito. Conservadorismo americano mostrado como é e a receita de como irritar gente entorpecida pelo comodismo. A jornada para trazer o novo, em versão que ninguém podia resistir à vontade de sair pulando. A música-título ainda é esperada nas pistas de dança do mundo todo, e desbanca qualquer outra.

Qualquer uma das comédias românticas da Molly Ringwald e do Patrick Dempsey : para citar alguns, vamos a “Gatinhas e gatões” e “Namorada de aluguel”. Ambos simples de doer, mas tudo de que você precisa para desopilar o fígado e entender um pouco de como a mente humana começa a trabalhar. E quem não tirou sarro da “dança do tamanduá africano” nunca foi humano.

“Predador” : Arnold Schwarzenneger fez pelo menos um filme insuperável na vida. Até por que desta vez um diretor manteve-o abaixo da escala da história, o que infelizmente não se repetiu. Aqui, ele é o coadjuvante de uma história sobre o medo mais supremo do homem: o de virar caça. E do quão necessário é andar de mãos dadas com nossa natureza primordial.

Calma. Com sorte, o seu preferido ainda vai aparecer aqui.

“Goonies” : Outro fora da escala da perfeição. Toda criança, se tiver espaço, vai ser um goonie. Vai sonhar e encontrar tesouros e piratas pelo seu mundinho. Vai ser capaz de manter-se firme em sua bem-aventurança mesmo quando acontecem aquelas coisas que a trazem ao mundo adulto. Melhor ainda se tiverem um Slot para cuidar delas e tiverem a hilária Música da Cindy Lauper “Goonies ´r´ good enough”.

“Os garotos perdidos” : Sabe toda a onda de vampiros adolescentes, góticos e poderosos? Veio daqui e cai por terra antes da metade do filme. Com the Doors na caixa (e a Música-resumo do filme é a regravação fantástica do Echo and the Bunnymen de “People are strange”), os vampiros mostram sua pior face antes mesmo de acabarmos de admirar aquela vida idílica de imortalidade e sangue. E claro, lá estão as estacas e uma boa idéia.

“Conta comigo” : Outro com Corey Feldmann, o moleque mais freqüente dessa lista. Ninguém acredita, mas é baseado em um conto do Stephen King. E se três garotos podem fazer seu ritual de iniciação à vida adulta apenas com o desejo de provar a si mesmos que podem ver uma coisa do mundo da violência, e ao mesmo tempo essa história ser contada com inacreditável sensibilidade, então, somos todos capazes disso. E nem precisa lembrar da Música título (“Stand by me”) para chorar.

“Em algum lugar do passado” : Romântico até a diabete, mas imperdível, traz o Amor trovadoresco até nossos pés e depois nos joga dentro dele sem ao menos nos apercebermos que, não importa o que aconteça, queríamos sentir aquilo nem que seja por um segundo. E além disso, traz o Christopher Reeve em outro tipo de super-homem.

“A pequena loja dos horrores” : Uma característica desta lista é a originalidade. Neste quesito este filme que é uma regravação se enquadra, por perverter um filme “B” dos anos cinqüenta e transformá-lo em um “terrir” musical da Broadway delicioso e de morrer de rir. Merecia ser mais conhecido, nem que seja apenas para ver Steve Martin no papel do dentista sádico. Mas uma planta cantando com uma voz da Motown também é único! (Não sabe o que foi a gravadora Motown? Vai aprender!).

“Irmão Sol, Irmã Lua” : Você nunca viu esse na sessão da tarde? Não é para menos. Mergulhos tão abissais na mente da espiritualidade ocidental não saem impunes do cinema. Tudo que um dia você pensou que estava no coração do Dalai-lama ou de madre Teresa de Calcutá, em uma versão belissimamente dirigida.

“De volta para o futuro” : Fala, você também queria ir lá e ver seus pais como eram quando se conheceram, e de quebra mudar o destino da vida de todos à sua volta. Afora atravessar o tempo em uma máquina como o DeLorean com capacitor de fluxo, você poderia revolucionar a Música e o mundo ao criar o rock´n´roll tocando “Johnny be Good”.


Findos os anos oitenta, a idéia virou fórmula e fomos por água abaixo. Os orçamentos explodiram, a segurança se tornou absoluta, haja visto o enorme número de apostas mal feitas que afundaram estúdios quando se começou a aplicar o esquema hollywoodiano em larga escala para contar histórias imbecis, e então aqueles filmes lendários viraram apenas exceções em um mundo de “blockbusters” infantilóides. Hora ou outra aparece um filme genial, mas tão espaçadamente que ainda temos que rezar por um ano que preste na telona.

E esperamos que, um dia, possamos ver de novo uma revolução nascendo de nossas mãos, de preferência com a garota perfeita do nosso lado, com o carro de nossos sonhos e melhores amigos derrubando monstros burocráticos e lerdos.

E nada é definitivo. Qual é o seu filme perfeito?

3.10.06

"Ride the snake"...

Bom, se você está aqui, provavelmente me conhece. Se me conhece, provavelmente já sentou para conversar comigo preferencialmente com um copo de cerveja na mesa, e já discuti xamanismo com meio mundo.

Aos incautos: o xamanismo é a religião primordial do ser humano. è a representação máxima da união do homem com a natureza que o cerca, e funciona através de reconhecimento de totens animais; plantas que fazem a ligação da alma com o mundo, as chamadas plantas de poder; batuques hipnóticos acompanhados de privações e sacrifícios, ou simplesmente escutando a voz da natureza quando em contato com o que nos cerca.

Lá estava eu na sala de répteis, meu setor atual no Zôo, sozinho e começando a rotina de manutenção, o rádio tocando uma música que amo e me enviando a algum estado de consciência estratégico com sua melodia arrastada e vocais envolventes, quando começo a fazer uma atividade meio fora dos padrões dos empregos normais: tirar a muda de peles das serpentes da coleção.

Serpentes ganharam muito de sua mitologia pois a renovação pela qual passam a cada troca de pele (a pele das cobras não cresce com o corpo) faz com que a mais feia cobra pareça recém saída do ovo após a muda, e o vínculo com aimortalidade, sabedoria, cura e perspicácia foi feito com elas em metade das culturas do mundo, a metade que conhece cobras.

é quando toca o seguinte trecho da música:

"Ride the highway west, baby
Ride the snake, ride the snake
To the lake, the ancient lake, baby
The snake is long, seven miles
Ride the snake...he's old, and his skin is cold..."

Para os hereges que não reconheceram o trecho sem o absurdo teclado de Ray Manzareck, este é um trecho de "The End", aquela que muitos consideram a obra prima suprema do The Doors, a banda californiana de maior importância no universo até o presente momento e lar artístico do auto-intitulado Rei lagarto, Jim Morrison.

Mas como Ricardo que é Ricardo procura pelo em ovo...

Resolvi ver de que cobra eu estava tirando a pele velha.

Uma cobra-rei californiana.

O xamã vê o que os animais lhe dizem em cada momento de suas vidas. E, por vezes, um rádio é tudo que os deuses precisam para dar um recado.

25.9.06

Turn Arooooound...

Na contramão da nostalgia, hoje que meu micro saiu de sua depressão e acaba de curar suas crises de pânico que o impediam de mostrar algo de si ao mundo, e também em celebração à primavera, tenho a declarar que fases antigas fedem, que nostalgia enche, que velhos amigos não servem pra nada se não são também atuais amigos e principalmente que pular de cabeça pode fazê-la doer, mas é absolutamente imprescindível à felicidade do gênero humano.
E que se eu ouvir mais uma citação a "Total eclipse of my heart" além das minhas mesmas eu vou mudar de planeta.

Em breve, com novas.

PS: ninguém, NINGUÉM, faz idéia do que é ficar perto de um crocodilo de cinco metros até fazer isso, e por mais calmo que ele seja, o dentuço impõe um respeito que me faz aceitar que o cretino do Steve Irwin era, apesar de toda a babaquice, macho pra cacete! Que não existam arraias no paraíso dos "caçadores" de fama, quer dizer, de crocodilos!

23.8.06

CAAARNE!!!!!!!!!!

...Gritou um dos neanderthais. A aldeia comemorou ao vê-lo chegar, com um braço quase todo arrebentado, sem dois dos vinte caçadores que sairam com ele e metade de uma anta que conseguiram trazer. O resto foi comido durante o retorno dos caçadores e seus lobos.
Pula para a frente. Os lobos pulam com as crianças e nenhum dos sapiens tem medo de ver um de seus filhos virar jantar deles. Quando chegou o caçador, ganhou um aceno bocejante, e decobriu pasmado que as cabras presas no pequeno vale ao lado da caverna estavam tendo filhotes.
Mais um pulo. Um sapiens sapiens manda a mulher calar a boca, enquanto ergue a machadinha suja de sangue do porco que acabou de matar no cercado. Ela se cala. Portanto vou mandar à putaqueopariu o próximo que me disser que um tal de senhor é meu pastor. Virei bicho de abate, por acaso? Ninguém lembra que onde há pastores há assassinos?
Hoje. Eu sei que a Harpia precisa comer, mas odiei ter que fazer o trabalho sujo por ela. Mas tudo bem, ninguém iria saber que a maior águia do mundo vive na floresta amazônica lá embaixo no parque, não fosse termos um suculento preá para ela comer. E quem sabe impedir que a floresta dela vire pasto, crie mais pastores, crie mais assassinos.
O herói é aquele que vive corajosa e decentemente a vida, honrando cada vida que se dá a ele (do alface ao frango).

22.8.06

Resssuscitando o Blog!
Novo momento de existência, apavorante, fascinante, intrigante e mais um bloco de "antes" que ficaram definitivamente para trás.

Agora, caracterizar em forma, modo, cor, som e volume a criação que ressurge, a escrita que reafirma-se, o lidar de sonho que realiza-se e exige mãos e braços fortes e habilidosos para não deixar o imaterial sonhado ser suplantado por uma realidade ainda mais inacreditável.

E o Cênico... o cênico sobrevive, mas nem sempre em cena. o Bio vai bem, obrigado, e agora pede atenção que lhe foi negada e mostra o valor de sua caminhada árdua e discreta ao topo do monte improvável.

E as náiades e ondinas, elfos e "Pucks" surtam de verdades e dissabores apagados.

Celebremos, e que o vinho seja abundante. A Gaia/Deméter/Atena, a Dionísio, a Hécate, a Hermes, a Morrigan, a Ogma, a Cernunnos e a uma outra escondida sob o véu.

Ria!

25.5.06

REINSTALAR O SISTEMA

Em algum lugar de hoje eu escutei apenas uma frase da Pitty e me veio este texto na cabeça.
Quem é Pitty? Onde você anda? Ah, como eu, nos últimos tempos está afastado de qualquer rádio ou programa onde apareçam as novidades da música. É a era do jabá ASSUMIDO. Mas se algum dia algo te chamou a atenção no que surgiu depois do Pearl Jam, então você sabe de quem estou falando.
Falo do alto de quem está de saco cheio da falta de organicidade do mundo e da música. Com alguma visão romântica sobre a música e odiosa quanto à POPularidade. Pitty é orgânico em sua temática ciberpunk que faz inveja a qualquer executor da trilha sonora de uma rave sem deixar de ser Rock. E isto é caro hoje em dia. Tem uma vocalista carismática, que graças à Deusa não vai ser convidada a posar na playboy e repetir a sina maldita que destruiu a ex-musa alternativa P.U.S., agora “Marabrás Sílvio Santos”, Syang. Um bom Rock´n´Tosco básico, ainda cru e cruel com os ouvidos dos avós, e com uma métrica que assusta os puristas da língua, que nunca entenderam o Roger “Ultraje” Moreira & Camões. Nada assim excepcional, mas durão. E, ainda por cima, sem ser do, nem se lixar para, eixo Rio-Sampa (No caso específico do rock, era eixo Sampa-Brasília com uma leve escala do disco voador do rock brazuca no circo voador, mas, nos últimos tempos, o rock brazuca está pra lá de fora dos eixos).
Mas o que escutei?
Reinstalar o Sistema.
Para os que, como eu, são filhos de uma época onde o “sistema” era uma palavra enorme, que os punks abominavam, que os hippies deram definição e mensuraram, os yuppies viveram e morreram, sabe que isso tem um peso absurdo na nossa forma de pensamento (e que carece de uma interpretação para as mentes de hoje, viciadas ainda mais nos efeitos dele mesmo). De fato, a visão racional-mecanicista-cartesiana impôs que o mundo deveria funcionar como uma máquina, e computadores são máquinas. Resumindo, o sistema pode ser entendido como o software falho que faz o mundo andar desse modo anti-produtivo e ineficaz, suicida e rumo a uma enorme pane que comprometerá todos as peças do hardware / mundo.
Só para não deixar de fora, é comum que os inconformados comuns digam que tudo é parte de uma conspiração de algum grupelho de religiosos, países, raças etc. Mas este é apenas mais um dos simplismos que nos convém quando nos deparamos com a impossibilidade de culpar a humanidade toda por sua burrice. Precisamos de um vilão com cara, não de um espelho. E é aí que a porca torce o rabo, ou a fragilidade do operador pinta.
Já faz quase um século desde que Einstein mostrou que a visão mecanicista onde o mundo ocidental se meteu depois da renascença era limitada e que ela mesma carregava dentro de si seus limites. A mecânica clássica se esvai quando enxergamos seus limites nos buracos negros e no começo do universo. Se esvai quando vemos a mesma quântica sobre a qual se baseiam nossos computadores de hoje (ou você não sabe que sem a física das incertezas que chamamos de “quântica” você não estaria lendo esse e-mail?).
Apenas o sistema de produtividade do mundo colonial não morreu com essa nova visão (de um século) e cresceu com a ignorância que este sistema manteve em suas bases. As revoluções estéticas do século XX falharam em mostrar a gente o bastante as suas idéias antes de serem deturpadas.

Vamos ver onde viemos parar:
Em que século mental a sociedade está ainda?
Estamos em um mundo onde temos o Prodigy e suas experimentações de peso de fazer inveja na grande maioria das bandas de metal, contrapondo ainda hoje, anos depois de surgir, a techneira já decadente que agoniza nas pistas e permite ao nosso bom e velho Rock´n´Roll mostrar a esse neto-coxinha o que é SOM e o que é rebeldia, 50 anos depois de nascer.
Onde um filme que fale de virtualidade encosta no budismo e sua noção de que o funcionamento do mundo se baseia em uma série de “reinicializações” que se manifestam a partir do erro.
E em que a gente consegue dar uma visão como esta, com citações e referências, impossíveis de serem interpretadas pela maioria mantida alienada, mas que enfim são acessíveis a uma boa parcela do mundo.
Então, analisando esse tipo de coisa e as que são óbvias (fome, miséria, destruição ambiental, injustiça social, políticos, capitalismo, comunismo, e milhares de outros “ismos”...) acabamos por saber que:
A - O sistema de compras, trocas, colonialismo, predatismo ambiental e retrocesso nas relações internacionais enquanto há um ressurgimento do regional (agora querendo reagir contra a uniformização) é falso, baseado em uma premissa falsa de mecanicismo e ignorância quanto à forma como as pessoas devem viver.
B - Que a forma de ser da vida e da cultura é independente do que acham os americanos ou os empresários, os políticos ou a música pop, os esquerdistas fósseis ou os historiadores-críticos- literários do politicamente correto.
C - E que a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão e arte. Mas também que os Titãs acabem logo antes que fiquem constrangedores como a jovem-guarda.
Enfim, estamos repetindo, em outra linguagem, em outro tempo, em outra vida, o mesmo momento que os Hippies tiveram, que os Punks tiveram, que os Che Guevaras e Dantons da vida tiveram. A hora de mandar no mundo, de criar programas de viver que inviabilizem o mundo virtual submisso que existiu nos moldes antigos até agora, onde podemos reinstalar o sistema e fazer um movimento que revolucione um passo a mais a vida. Até o momento em que estaremos deixando a próxima geração chacoalhar nossa comodidade pós revolução.
A diferença desta vez é que temos a consciência que as revoluções devem se suceder eternamente se realmente queremos que as coisas se tornem melhores. Quando alguém vai nos reconfigurar, e saberemos, ao contrário dos burgueses que mudaram a França e caíram na farra, que a mudança é contínua e necessária. Que um dia seremos velhos que devem ser mudados, e não nos oporemos a isto. Pelo contrário, entenderemos que somos, enfim, Beats. Mais do que eram capazes de ser os nossos avós.
E que quando vierem atrás de nossas cabeças, nós reinstalaremos o sistema e aqueles acostumados com o mundo como era se perderão na formatação do novo.
Alguém me desconfigurou?

21.3.06

Arthur versus Hollywood

Hoje eu revi “Rei Arthur”.
Para qualquer ser humano que saiba quem sou eu, sabe também que os mitos arturianos ocupam na minha arquetipi-mente um espaço importante e quase sagrado. Depois da mitologia grega, são o mais representativo festival de signos do meu cérebro e, por que não em nível inconsciente, da população ocidental com alguma cultura.
O filme vale o tempo despendido, basta para o que geralmente comento sobre filmes. Mas o importante é que, dentro de uma linha de raciocínio que tenho buscado finalizar há tempos, ele serve como uma luva. Mito que é, preenche, dentro de uma realidade imutável e independente do período em que estamos, uma lacuna sobre o entendimento de nosso mundo atual. Então senta que o texto ficou longo.
Posso estar superestimando um filme do brucutu Bruckheimer, e estou mesmo. Não supera “Excalibur”, de John Boorman, nem de longe. É fraquinho... mas é a prova definitiva de que arquétipos superam seus limites (ou os limites mercadológicos que tentam impor-lhes) pelo simples peso de existirem.
Mas de que estou falando? Do mundo, é claro, e do seu principal intrometido de hoje, os EUA. Bom, não é novidade que o cinema Hollywoodiano espelha sobremaneira a posição política do povo americano que tem alguma visão. Nem sempre boa, mas existente.
Esqueçamos os caras que lutam pela não necessidade de porte de armas para carregar um canhão do Texas. O americano médio tem sua mensagem estampada simbolicamente no cinema desde aquele fatídico momento em que Scarlett O´Hara levanta o nabo pro céu e grita que “nunca mais passarei fome!” (entra a musiquinha, cenário sulista lindo com uns escravos mortos debaixo da terra, e vam´bora). A diferença é que, até então, o cinemão americano tinha uma penetração humilde no imaginário externo mundial. Uma superprodução de Hollywood não afetava eleições nem fazia crianças tailandesas brincarem de soldado americano. Mas note: Scarlett, a americana prototípica (o sobrenome irlandês é proposital: a pessoa que tem descendência fora mas que larga seu passado para viver o sonho americano) fala abertamente que “Dane-se se eu pilhar, estuprar, destruir, enganar etc. Eu vou ficar bem”. Mas isso é anda um grito pra dentro, americanos falando para americanos saídos da miséria da grande depressão, evocando um passado miserável mas que fez seu caráter. E o fato de que Scarlett fica sozinha no fim não deixa de ser um preço que ela paga por ser uma besta egoísta.
Gente, eu vou falar de maus aspectos interpretáveis de vários filmes, mas isso não quer dizer que eles sejam manipulações cruéis de uma conspiração americanóide contra o mundo. Eles apenas espelham sem querer alguns aspectos que seus espectadores precisavam ver na tela para que o filme tenha se tornado um sucesso. Quer dizer, os antigos, que primeiro eram feitos e depois faziam sucesso pelo que diziam, ao contrário dos blockbusters de hoje.
No passo seguinte, a americanização do cinema pós 2º guerra espanta o cinismo da fase noir e cínica imediatamente anterior e produz espetáculos, de fundo extra-americano como “Ben-Hur” e “Os dez mandamentos”, e a fase áurea do faroeste, que é maior que os EUA. Nestes filmes, uma épica costura diz o seguinte: uma onda civilizatória tá chegando, seja (respectivamente aos exemplos acima) o cristianismo, o povo prometido ou os pioneiros, e ela traz mudanças pra melhor a vocês, incivilizados. São os EUA reconstruindo com suas prioridades a Europa destruída pela guerra e fazendo política de boa vizinhança com o resto do mundo (de onde você acha que veio a ordem para Disney criar o Zé Carioca?)
Marca o Ben-Hur que ele é a chave para entender o que vai acontecer.
Depois, o cinema entra em uma fase meio morna, com a Europa brilhando, e uma boa safra de atores. Contra o comunismo, o cinemão entra na fase “nós contra eles”, sejam “eles” marcianos, espiões ou índios. 007 está aí. Estranhamente, os que vieram em seguida foram ainda mais cínicos, e o cinema ficou bom nos anos sessenta para setenta. Astros de calibre, talento de sobra, e cai como uma bomba filmes como “Todos os homens do presidente”, “Apocalipse Now” ou mesmo “Rambo I”, que criticam o monstrengo que o governo americano se tornou sem condescendência. Temos um inimigo, até temos, mas estamos nos tornando piores do que ele para combatê-lo.
Mas daí entra alguém com cérebro no Kremlin, um sem cérebro mas com uma superpotência para peitar na casa branca, e um bando de gente com idéias que foram simplificadas demais no comando do dinheiro de Hollywood. Spielberg e companhia. E até 007 entra em uma fase de crítica. Acho que é por isso que as pessoas não consideram Timothy Dalton um bom 007 e não passa mais “Rambo III” com seus heróis muçulmanos na TV. Rambo é a maior vítima da simplificação de idéias dos anos 80. E destruiu as chances do competente roteirista Silvester Stallone ter uma carreira duradoura. O cinema por fim alienou-se de vez?
Não, pois daí ele viu o muro cair, (alguém se lembra da onda de filmes pró-liberdade, como “A lista de Schindler” e “Braveheart”?), todos se perguntam se o leão vai rugir e, estranhamente, o eleitorado colocar um cara de paz no poder. E na fase Clinton, apesar dos filmes que tiraram sarro de tudo, aparecem heróis presidentes de monte: “Independence Day”, “Meu querido presidente”, “Presidente por um dia”, “Força aérea 1” e por aí vai. Até “Top Gang 2” usa este recurso. Pois Clinton era alguém que fazia os EUA um lugar legal para o resto do mundo. Tocava Sax, catava estagiária no fim do turno (lembrando que ele fez uma guerra inútil e sangrenta no leste europeu para as pessoas esquecerem disso. Assistam “Mera coincidência” e pensem que se ele é mera coincidência), enfim, apesar disso, um humano com um sorriso inteligente no rosto. Ele era tudo isso? Não interessa, mas ninguém odiava tanto os EUA na época.
Salvo uns caras que o Reagan treinou lá no Afeganistão.
É aí que entra o mito: quando entra, discutivelmente, o Bush, quem o cinema tira da mala? O império romano. “Gladiador” traz de volta o gênero épico. Mas ao invés do cristianismo e da onda civilizatória de “Ben-Hur”, uma força sem espiritualidade alguma, amorfa, indescritivelmente armada e poderosa (a batalha de Maximus contra os bárbaros é de uma eficiência tão cruel e mais bem feita que a “guerra do golfo 2, a missão falha”, de “Bush 2, o clone” do horrível cinema da realidade). Quando alguém se rebela, é contra uma fruta podre que manda (quem será?) e não contra o império e seu jeito de ser. E matar a fruta podre implica em morrer também (então pensa bem no que vai fazer, viu?). E quem manda nesta era? Bom, o presidente retratado em “X-men 2” é um tapado manipulável por militares! E desafio alguém a me dizer um filme atual com um presidente simpático. E nem precisamos citar Michael Moore.
E então o revival do épico traz “Tróia”. Quem leu minha crítica do filme sabe que ele não vale tanto quanto “Cazuza” no retrato de heróis para essa geração, mas mostra um herói que não luta por um país, mas sim por seus fins. E esta idéia se completa magistralmente em “Rei Arthur”.
Mas como assim?
Qual é o momento que você vê agora na tevê mundial? Qual é o mundo que se revolta contra atentados em Beslan mas esquece do que aconteceu em Bophal? Mas que igualmente quer finalmente entender por quê alguém acha legal jogar avião num prédio.
O que acontece neste Arthur enganosamente baseado em fatos mais reais que os anteriores? Bom, advirto que aquela marketagem de “baseado nas mais recentes descobertas arqueológicas” é papo furado brabo. Aquela visão é tão real quanto a que mostra a Morgana como uma fada maligna, Arthur como um rei celta ou Merlin brigando com a Madame Min. Quer saber por quê, escreve aí que depois que a gente fala disso, ou vai ficar longo demais. É assunto pacas.
No fundo no fundo? Quem não gosta de revelações e não viu o filme pare por aqui, antes de mais nada. Vamos ao centro da questão. O Arthur do filme é um mezzo romano, mezzo nativo (falam “bretão”, povo que não existia à época, mas tudo bem) que sonha em terminar seu trabalho lá naquele fim de mundo ilhado e voltar para Roma, e mandar seus cavaleiros de volta para seus lares ancestrais. Quando Roma larga eles de lado e desencana da Bretanha por motivos egoístas, eles deveriam desencanar junto, fugir, não é?
Mas daí uma mulher (quem lembra que o significado do nome Guinevere é “Soberania da Terra” deve estar se arrepiando neste momento) lembra-o, e por tabela aos demais, que lar é o povo te acolhe, a cultura que vem da terra, as raízes de nossos ancestrais. Se um império exterior nos separava e agora mostrou sua verdadeira face, e por outro lado inimigos sem nome (os saxões não são nomeados o filme todo!) espezinham, agora devemos cuidar de amarmo-nos pois somos todos irmãos, filhos da mãe-terra, e lutarmos honradamente por isso.
Não, não aparece isso no filme, que mal rala estes significados, mas quem lê entrelinhas (eu diria “procura pêlo em ovo”) acha aí o tema da soberania da Terra e, mais ainda, o sentido de tribo global. Somos um povo, parte de muitos, mas a cultura que nos criou, a Terra que nos anima, é quem somos, acima de quem manda em nós.
Depois de tanto tempo tentando impor seu modo de vida, o império (qual?) mostra sua face e nos dá a chance de sermos nós mesmos. Sejamos bretões, brasileiros ou tailandeses; cristãos, pagãos ou muçulmanos; Txucarramães, góticos ou intelectuais. Que tal mandarmos o império ir passear e consumir a si mesmo nas suas contradições (todos sabemos que o império romano morreu olhando para seu umbigo que havia se perdido do centro do mundo) pararmos de alimentá-lo, e irmos cuidar de sermos nós mesmos com os recursos que temos, sustentando-nos sem machucar nossa terra, e deixarmos cada um ser do jeito que quiser? Aprendemos, antropofagizamos com o período em que o poder enorme e externo estava aqui, mas podemos falar com outras pessoas, trocarmos informações, aprender, e usar este saber do império para meus fins e dos meus amigos e conterrâneos, mesmo que sejam de uma tribo que só existe na minha mente e forma de vestir e/ou pensar e/ou etc...
Quem criou softwares livres senão alguém que acreditava nisso?
E, se em algum momento esta necessidade mítica se mostra verdadeira, é agora. No momento de maior desespero, o rei se levantará e apontará Excalibur para nos mostrar o caminho.Foi tudo que eu quis dizer nos parágrafos acima.

25.2.06

Oitenta e quanto?

Acabo de ligar o rádio. Está tocando Capital Inicial. Mais especificamente, é o capital tocando uma música do Kiko Zambianchi. Em seguida, e não tou mentindo, tocou Kid Abelha, Titãs (Os cegos do Castelo!) e, pasmem, Tokyo. Hora do Flash Back? Que nada, mas algo se arrepia de medo em mim quando escuto a voz de Rick Martin com um refrão meloso e grudento.
Fenômeno temporal engole o Brasil?
Por um instante, duvidei de onde (quando?) estava. Como o meu velho e bom rádio do quarto não tem CD player, não consegui me situar no tempo. Estava tudo tão irreal, pinel, pinel, que resolvi pegar um jornal e ver o que acontecia. Explodiu um ônibus espacial, a França quebra o pau com os EUA e seu presidente ultra-direitista texano por causa de sua política de oriente médio. Estampadas logo abaixo, li as palavras Iraque, Taleban e Afeganistão. Crianças têm medo de armas nucleares caírem em suas cabeças, de Anthrax, de agente laranja. O Greenpeace cita Bhopal ao falar dos resíduos radioativos brasileiros. As roupas ousadíssimas e modernas dos desfiles tem rasgos propositais de trinta centímetros costurados com alfinetes de bebê.
Tudo bem, vamos à rádio de novo. Por que raios Ozzy Osbourne é ídolo adolescente? E toca Iron Maiden com um vocalista que entrou no grupo há pouco tempo: Bruce Dickinson. Red Hot é citado como renovação musical (?), enquanto toca uma ode à Califórnia. Mas não é California Über Alles. É Kalifornication. Alguém fala de Big Brother. Então eu entendo. Agora é 1984?
Em algum dia no fim dos anos oitenta, lá por 1991, 92, caiu o muro de Berlim de vez e com ele morreu uma década que não sabia que deveria morrer, que deixou inacabada tudo que trouxe.
Porém, esta década que acabou com um certo Bush guerreando com o Iraque, ressurgiu das cinzas ao descobrir que não era definida pelo confronto entre duas superpotências fajutas. Era definida pelo oriente médio, este misterioso lado do mundo que é disputado à tapa pelos senhores da guerra e do petróleo há eras. Era definida por músicas ingênuas de grupinhos brasileiros, por músicas de revolta de metaleiros, por negar as palavras que os Punks gritavam em seus coros, já então encurralados pelos que os queriam suavizados pelo lado rentável de suas grotescas e vulgarizáveis modas e ousadias. Eu não estou em 1986. Ainda. Não demorará até que a lambada volte. E o Rock´n´Rio! (O único, espero. O resto foi xerox mal-tirado).
Temos saudade, nós que agora somos maiores de idade (não adultos, ainda) de tempos em que as músicas falavam mais alto do que o mundo maniqueísta que víamos. Não que ele fosse simples, mas o entendíamos, pois suas canções falavam a algo mais que nossos testículos e nossas lágrimas de crocodilo, de dor de corno, de desejar virgindades do supermercado musical.
O Taleban não é mais a força democrática de heróis muçulmanos (quem lembra de Rambo 3, que nunca mais passou depois de 11 de setembro de 2001?), mas ainda portam armas americanas. Nunca pensei que teria saudades da velha União Soviética, anterior à Glasnost, pois ao menos ela trazia alguma alternativa, ou melhor, contrapeso, aos EUA no já pré-histórico “equilíbrio do terror”. Ao menos, Gorbathev e umas poucas vozes trazem algum equilíbrio às vozes da política mundial, ainda hoje. Não é estranho lembrar-se de quando os soviéticos eram o mal, mas os russos de hoje passam fome sob a sombra de uma máfia ex-KGB?
Mas tudo bem. Já voltei ao mundo moderno. Tem um imbecil falando que vai arreganhar as pernas de uma vadia, estuprá-la e enchê-la de tabefes. Nada como passar por uma rádio onde toca Funk carioca para sermos lembrados de que não faz tanto tempo que descemos das árvores.
Na verdade, não acabou a década de oitenta, de sessenta, de 1910, de 1840, de 860, de 1000 A.C. ou a de 300.000 antes da escrita. Continuamos lá, pensando se o trouxa vai se descuidar de sua banana para que possamos pegar ela e levar pra casa. Uma dessas bananas hoje se chama petróleo. Nossa casa faz com que metade do mundo viva na miséria ao gastar cem vezes mais energia e alimento que as casas da Índia. Nós nos chamamos de civilizados pois podemos ver um grupo se matar ante nossos olhos eletrônicos, trancados em uma casa-circo romano; e achamos o máximo que o governo tenha satélites nos vigiando a cada passo.
E agora está tocando Guns´n´Roses... logo, será Soft Cell, com seu hit novo, lançado em 2003.
Mas o que toca em minha mente é California Über Alles (que eu nunca soube como se escreve) e suas citações ao Big Brother que todos temem, mas ignoram.
Uma grande vantagem. Hora ou outra, vai ressuscitar o John Lennon, e vão tocar na rádio New Model Army com sua maravilhosa “51st State” e vão nos colocar de novo em 1989, mas indo para frente. E vamos saber usar Internet e outras coisas que o estado de coma chamado de anos noventa nos deram, sem explicar para quê serviam...

21.2.06

DO HORROR


Algumas considerações acerca do gênero horror aplicadas à literatura, cinema e teatro, extraídas de "A filosofia do horror - paradoxos do coração", de Nöel Carrol e de mais um monte de artigos em revistas e trabalhos.

Carrol expõe suas idéias do livro em busca da resposta a uma pergunta simples: por que raios alguém pagaria para tomar sustos, ou ainda mais, para ser enojada, apavorada, mantida em suspense e ter seu coração feito de tamborim, e porque quer?

Para chegar a isso ele analisa diversos aspectos que compõem o que ele chama de "horror artístico", em detrimento do horror real, do qual nós fugimos e pelo qual certamente não desejamos passar.

O horror nasce como o conhecemos por volta do fim do século 18, e uma relação deste seu definir com o domínio de seu oposto evocativo de racionalidade, chamado iluminismo, não é coincidência. Se estabelece com o romance de Shelley e toma fôlego com o cinema. Mas quando chega ao cinema, ele já tem uma longa história com o teatro e com a ópera. Disto, ele ganha uma estreita relação do gênero com os modos narrativos da moda de então, como o realismo melodramático e os experimentalismos de gênero (mas não só: Há algo que se deve ao expressionismo advindo do romance gótico que está além, tocando de alguma forma no épico especialmente no que se refere aos enredos do extrapolador).

A princípio, busca-se uma caracterização que seja ampla o bastante para abarcar todos os tipos de narrativas que atinjam o horror artístico e mesmo exemplares de artes plásticas e outras não-narrativas. Essencialmente, um fantástico ente extraordinário que aflige um mundo ordinário, e causa um sentimento na platéia chamado de “horror artístico”. Isso é muito diverso de um conto de fadas, que possui fantásticos entes que são, em verdade, ordinários em um mundo extraordinário, e portanto estabelece-se uma oposição que define o gênero.

Do monstro.

O cerne do Horror é a presença de algo ameaçador que é avesso a caracterizações culturais e portanto ofende violentamente nossas interpretações e classificações. O número de descrições de criaturas na literatura através de sentimentos de enlouquecimento quando de seu surgimento é um bom exemplo deste aspecto. A criatura é necessariamente intersticial e impura, isto é, fusionada (que violem as distinções categóricas de dentro-fora, animal-homem, vivo-morto... como vampiros, fantasmas, a criatura de Frankenstein ou zumbis) ou fissionada (lobisomens, dado a fissão entre dois aspectos diferentes no espaço/tempo, ou psicóticos, pela fissão entre o homem controlado e seu aspecto amoral); massificada (abelhas assassinas) ou magnificada (um tubarão que mata em um verão o que todos os tubarões do mundo matam em uma década, dinossauros, mas também aranhas gigantes), ou ainda dotada de capacidades que escapam ao ordinário.
Norman Bates é uma figura que escapa a nossas categorias culturais estabelecidas, e mesmo não sendo sobrenatural no sentido usual desta palavra ele está além do que chamamos de natural e suas capacidades ao longo do filme dão uma impressão de sobre-humanidade. A criatura também evoca repugnância (e novamente a quantidade de caras e bocas de “vou vomitar” do cinema e as descrições de asco da literatura, assim como a presença de elementos sanguinolentos em muitos dos filmes que se prezam ao estilo “prova de fogo para adolescentes testosteronizados” serve a isso), mesmo que seu aspecto não seja enojante, como o assassino da HQ “Do Inferno”.

Da estrutura narrativa

A estrutura do gênero horror é identificada através de dois moldes que eu com minha cinemateca mental, resolvi concordar sem pestanejar por não encontrar exceções de super-estrutura a estes moldes. O primeiro e mais comum, e podemos usar "O exorcista" como exemplo, é o enredo do descobrimento, com uma de suas modalidades, o descobrimento complexo, sendo a básica a partir da qual há variações. Esse enredo complexo é feito de quatro momentos: a irrupção, onde o objeto de horror exibe danos, mortes ou inflige suspense aos protagonistas e seus efeitos são percebidos (a longa introdução onde descobrimos o que está acontecendo com Regan); o descobrimento, feito pelos protagonistas e que faz com que nasça a necessidade de combater o problema (quando a mãe de Regan a vê girando o pescoço e descobre que o que acontece com ela é anti-natural), a confirmação, em que os protagonistas precisam obter recursos ante um mundo ou figura de poder que tem a capacidade de evitar os danos ou controlar a entidade (o convencimento do padre Karras e da igreja acerca da necessidade do exorcismo. em geral é uma figura poderosa, mas podem ser apenas um adulto com as balas de prata, como em "Bala de prata", de Stephen King. A corporação que tenta manter o Alien vivo ou a prefeitura que mantém os banhistas vindo em "Tubarão" são outros exemplos); e por fim, o confronto, (o exorcismo) que contém em si o acúmulo de desesperança criado durante a confirmação que é necessário para um elemento comum, mas não imprescindível para o horror: o suspense.
As variações no descobrimento complexo acima descrito são por volta de 14, estabelecidas pelos elementos subtraídos ou recombinados acima. King Kong não tem irrupção ou confirmação, por exemplo. Drácula tem os quatro, que se repetem ao longo do romance para estabelecer os diversos níveis onde a questão do vampiro é discutida.
No cinema, especificamente, é comum criar-se um elemento introdutório aos demais que serve como recurso dramatúrgico, a fim de estabelecer empatia entre protagonista e público e também a repugnância e assombro ao elemento sobrenatural.
O segundo molde é aquele, exemplarmente, de Frankenstein: o do Extrapolador. Essa figura viola uma ordem natural e cria algo que escapa ao normal, com conseqüências nefastas. Jurassic Park e Constantine (o filme, devido ao surgimento da lança do poder) se enquadram nesta premissa.
O suspense, como é óbvio, nasce de um padrão simples: o que é moral tem baixa probabilidade de vitória, o que é mau tem alta probabilidade. Sustenta-se normalmente por meio de perguntas imbricadas cujas respostas direcionam o espectador ou leitor até onde desejamos.

O suspense é um componente comum no horror, mas não obrigatório. É algo de imensa simplicidade: o suspense nasce quando aquilo que é moral, benigno e/ou com que tivemos identificação tem baixa probabilidade de sucesso e seu oposto amoral, maligno e/ou repugnante tem alta probabilidade de sucesso. O acúmulo de desesperança citado acima vale-se disto.

Da mesma forma, o modelo de thriller é comum também e muitas vezes divide uma história com o suspense. Contraposto a este, o thriller parte de uma desabalada batalha ou perseguição, em seqüências de fatos que criam por si sós a história, sem a criação de climas imbricados. De certa forma, "A guerra dos mundos" é um thriller onde o suspense nasce da impotência ante a destruição, apenas.

Outro elemento comum ao horror é o fantástico, como elemento narrativo que propõe a dúvida entre a realidade ordinária e um elemento que a abalroe, escape-lhe, questione ou destrua. Em geral, na ficção cinematográfica, não há espaço para que o fantástico fique em seu estado puro, que é o irresoluto, mas na literatura é relativamente comum que nunca saibamos se algo que nos intrigava como violação possível da realidade realmente o era.

A sugestão também vive no horror. H.P. Lovecraft escreve: “Apenas o suficiente é mostrado, e apenas o mínimo é dito”. Stephen King e Clive Barker concordam com uma visão pessoal mais simplista, que nas palavras de King poderia ficar assim: “o terror é a emoção mais fina, e assim, tentarei horrorizar o leitor. Mas, se achar que não conseguirei, (ou não obterá o efeito desejado), tentarei horrorizá-lo. E, se achar que não posso horrorizar, partirei para a grosseria”.
Barker sempre parte para a grosseria, basta lembrar de Hellraiser.
Aqui, o horror é diferido do terror, sendo este primeiro considerado irmão do suspense e uma mistura de medo com imaginação. O horror é o medo mais o retrato gráfico horripilante que conduz a imaginação, e a grosseria é medo acrescido dos detalhes pegajosos, cruentos e moralmente ofensivos, como cabeças de feto recheadas de vermes na mesa do café da manhã.
Viu como funciona?

Assim definidas, as duas estruturas narrativas básicas encontradas em todas as peças do horror INDEPENDEM DOS MOLDES ESTRUTURAIS da literatura ou dramaturgia. Podem ocorrer em tragédias, líricas, melodramas, dramas, épicas ou o que o valha. Está acima do modo como as histórias serão montadas.

O melodrama, caracterizado usualmente como construção de uma narrativa que busca a exacerbação do emocional durante seu usufruto; tem uma ponte musical de onde vem sua definição clássica: o uso da sonorização em prol da construção psicológica de um estado emocional almejado. Esta última é própria das artes interpretativas, mas o melodrama em sua primeira definição casa como uma luva no que conhecemos e queremos com o horror. Ele é definido por provocar no público sentimentos acima e alheios aos naturalistas, afinal.

Certa vez escrevi sobre o que adaptações cinematográficas devem a Wagner e suas premissas lançadas, primordialmente, com “O anel dos Nibelungos” e até onde isso chega, como por exemplo outro subproduto da cultura nórdica, “O senhor dos Anéis”. Mas isso fica para depois.

Do medo.
Vou viajar um pouco. Quando assisti a “Aliens, o resgate”, pela primeira vez, fiquei fascinado, mas ele é uma ficção de horror extremada na ação. Tempos depois, quando vi “Alien, o 8º passageiro”, passei a encarar “...Resgate” como algo muito mais assustador, pois ali a criatura serve ao propósito horrorífico como poucas vezes se viu no cinema, ainda mais na Sci-Fi.
Em compensação, depois de duas cenas, ninguém mais tem medo do Slot em “Goonies”. Mas soltem o Slot na “Nostromo” e falem para ele que se ele trucidar todo mundo ele ganha um chocolate e temos um horror. Filmes com palhaços assassinos foram feitos e deram medo a algumas pessoas, ou o medo de palhaço é tão limitado que você não conhece ninguém que tenha? Claro que isso tem a ver para alguns com o Serial Killer que matou um monte de crianças vestido de palhaço e que inspirou uma das facetas de Hannibal “the cannibal” Lecter, mas apenas isto? O palhaço é desconhecido e se faz de bom, mas sob ele há aquele ser horrível, um humano adulto.
Carrol não inclui exemplos de um horror que ficou ainda mais comum depois que seu livro foi escrito, o horror dos psicopatas assassinos. Até então, o mais comum é que até mesmo assassinos maníacos tinham poderes sobrenaturais, como Jason. Mas os assassinos de filmes são tão impossíveis quanto os aliens.
Uma técnica de terapia anti-fobia recente consiste em fazer com que o fóbico observe objetos que remetam à forma básica do seu objeto de medo e isto faz com que sua mente associe a imagem mental indireta ao inofensivo e por tabela a mente começa a dar o justo valor ao que a aflige. O exemplo clássico é expor um aracnofóbico a cabelos rastafaris, chips de computador e polvos até que ele conceba a aranha como apenas mais um objeto. As implicações na forma de interpretação/associação mental que possuímos ainda merecerão estudos imensos para explicar por que raios isto funciona.
Teria o horror função parecida, mas em forma de fenômeno de massa? Nos faria pouco a pouco capazes de suportar as agruras da vida e depois nos confortaria, satisfazendo nossos anseios que não conseguimos explicar, dando-nos uma válvula de entendimento para um mundo além do compreensível? Mostrar que há algo além inexplicável, e que mesmo que ali isso seja horrorífico, quer dizer que igualmente poderia haver algo desconhecido e benigno. Fica a idéia complementar à abaixo exposta...


Do paradoxo final.

Diversas vezes pensadores e autores do horror propuseram respostas ao paradoxo que o horror artístico traz. Duas das mais citadas são a de Stephen King e a de H. P.Lovecraft.
King defende, e aí alia uma visão política óbvia em sua obra, que o horror é um agente da norma, e a motivação básica dos consumidores do gênero seria a vontade de ver suas certezas e ideais de normalidade refeitos ao fim de um conflito com seu oposto. Politicamente, isso pode ser interpretado como uma visão direitista do horror, pois ele obedeceria/confirmaria o status quo. O número de obras subversivas ou/e que não tem final de retorno à normalidade derrubam essa tese, embora ela ainda sirva a muitas obras, subciclos do horror e mesmo a Stephen King em particular (vocês já repararam que os velhos, gays, mulheres não-submissas e qualquer outra coisa que não seja do gosto do americano médio são sempre as que morrem nas obras de King?).
Lovecraft, por sua vez, pode ser considerado o primeiro teórico do gênero. Sua hipótese é de que buscamos o horror por desejarmos um assombro secular e cósmico, uma irrupção de algo maior que nossa realidade. Ele tem razão no que se refere ao tipo de obra que ele mesmo escrevia, onde a grandiosidade dos fatos sobrenaturais sempre, sempre extrapola a realidade comum em no mínimo mil vezes.
Obviamente nem toda obra de horror faz com que vislumbremos uma fração do estupendo que abarca nossa mísera realidade, mas isso explica também o motivo pelo qual a repugnância é superada: o fascínio compensa a sensação desagradável, pois ele é parte daquilo que nos é demonstrado como sobre, muito sobre o “natural”, aqui visto como uma visão curta e emparedada por concepções de moral ridículas, de certa forma, e às quais o objeto do horror só poderia solapar.
Portanto, para Lovecraft, ficar enojado é o preço para vermos embasbacados o quão pequena é nossa forma de pensar. As criaturas de Lovecraft sempre são de poder cósmico assombroso? Nem sempre. Assim como devemos nos lembrar que Lovecraft era racista e conservador. Essa visão do horror como “estupro prazeroso ao nosso cérebro” não é ampla o bastante.
Aí entramos no campo da psicanálise. Os medos primários do inconsciente coletivo seriam um prato cheio aos Junguianos, e as estruturas libertadoras, por catarse, das repressões internas que o horror oferece seriam a sobremesa Freudiana. De novo, não dá pra pensar em estrutura repressora liberada quando um pé de lagarto gigante nos esmaga, e que medo primário aparece em uma obra como “O Sabath das bruxas” de Goya? Igualmente, podemos imaginar que nem todo horror é uma prova de masculinidade para adolescentes.

No fim, a explicação mais genérica possível é a do senso comum, e é perfeita em sua simplicidade:
Aquilo que normalmente seria evitado, na ficção é alvo de curiosidade e fascinação pela impossibilidade categorial, e esta curiosidade é estimulada ainda mais quando é orquestrada por uma narrativa que induz ao descobrimento / definição de um mistério, mesmo que insolúvel. O objeto de fascínio é diferente de nossa realidade categorial por seus aspectos horroríficos (intersticiais, ameaçadores e impuros) e exatamente por isso é uma curiosidade que deve ser enfrentada. O sentimento que isso desperta é ainda mais forte quando há um desafio a ser galgado, o que se aplica sobremaneira à estrutura narrativa. Ainda mais, quando há um elemento de descobrimento.

Tal satisfação de curiosidade ganha vulto em momentos socialmente tensos. Os ciclos do horror no cinema americano são claros quanto a isto (a depressão a partir de 1929, a paranóia anticomunista, a fragilidade da economia dos anos oitenta, e atualmente o medo com o desequilíbrio social mundial provocado pelo Bush).

Enfim, quando observamos o horror em nossas vidas, continuaremos a buscar motivos em nós para enfrentarmos Fred Krueger no cinema. Sem saber que é exatamente a curiosidade sobre sua natureza bizarra que nos leva até a sala escura. Saber isso não acaba com a graça do horror, mas faz com que nos liberemos para os outros aspectos de leitura disponíveis em uma obra e que nos dizem mais a um aspecto da realidade específico. E o horror é nosso gênero quando imersos nas incertezas, pois ao confrontar elementos que vão além de nossa capacidade avaliativa na ficção conseguimos satisfazer muitos aspectos mentais, como a sagacidade e a curiosidade, para que ajam no mundo das nossas, agora, devidamente dimensionadas dificuldades.

E eu odeio o “O vingador tóxico”. Mas morro de medo em “O Iluminado”.

16.1.06

Iniciando o papo


E por um instante, todos, absolutamente todos, horrorizaram-se e aclamaram por ver que o último bastião da escrita no papel, da máquina de escrever, das anotações no papelão que envolve o leite, resolveu ter o seu meio cibernético de botar idéias ao mundo. e o regozijo veio logo em seguida!
Bem vindo eu mesmo a este lado da tela.
16/01/2006 Ricardo