10.3.07

Um jantar, ossos e liberdade criativa

Neste exato momento estão subindo os créditos de “Adivinhe quem vem para jantar”, o clássico de 1967 que fez de Sidney Poitier um astro, coroou mais uma vez as carreiras de Spencer Tracy e Katherine Hepburn e trouxe para a tela grande do mainstream a questão racial em technicores muito além do preto e branco.

A despeito de ser um ótimo filme, atual até mesmo no ritmo (que é normalmente o grande empecilho para a maioria das pessoas não-acostumadas ao cinema clássico e viciadas nos fliperamas atuais) e das atuações “actor´s studios” primorosas, ele é um dos grandes exemplos do roteiro planejado de cima abaixo para atingir seus objetivos, isto é, passar uma mensagem específica.

Protagonista, antagonista, situação, influências externas, personalidades, todas são montadas minuciosamente para, no discursivo (na época era necessário) gran-finale, ninguém ficar na dúvida sobre a moral da história.

Preste atenção: nada é coincidência ou acaso. Cada caracter é parte do quebra-cabeça. Cada profissão ou opinião é simbólica. Não fica uma farpa injustificada em todo o filme.

Isso normalmente nasce daquilo que eu comparo com a montagem de um aeromodelo dramático: colocamos a estrutura, acrescentamos motores, laterais, rodas, pintura, hélice, gasolina e só depois botamos o troço para funcionar.

Se você está aqui sabe que eu escrevo. Muito. De tudo. Mas eu escrevo de outra maneira. E, sem desmerecer o roteirista de “Adivinhe...” ou quase todos os seus colegas atuais do cinemão, eu considero uma forma de escrever muito pouco orgânica para o meu gosto.

Eu estudo vida. Meus paralelos quanto ao que chamo de orgânico Vs o mecanizado, automático, robótico são imensos. O esqueleto surgiu na evolução muito depois dos primeiros corações batendo. A pele surgiu depois da respiração. As cores vieram depois da digestão. A vida uterina já funciona quando nem a chamamos assim ainda.

As histórias nascem em caldeirões de protoplasma, sangue e ossos. Elas pulsam e cheiram mal e soltam sujeira pelo carpete. Seus personagens brotam do solo humoso como vermes já independentes, cegos e simples, comendo, babando e respirando.

O esqueleto aparece depois.

Quando começo a escrever, estou nadando na liberdade. Os fatos, o que aconteceu com aqueles personagens pulsa e se lança contra minha consciência. Arremetem até se esgarçar contra as paredes da lógica. Quando o caos primordial passa, e tudo já está lá, e a história já respira por conta própria e consegue se sustentar, se alimentar e interagir com o ambiente externo, tirando dele o que precisa e jogando o que já digeriu, é só então que aparece-lhe esqueleto, pele, músculos. E o verme começa a caminhar para ser um ente complexo.
Histórias nascem nas mentes, não são montadas como máquinas.

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