27.4.10

Quem fica e quem vai.



Li recentemente duas coisas que são, de certo modo, opostas. Ambas tratam da velhice, da consciência da morte e da responsabilidade ante o mundo.
"Rip van Winkle" de Washington Irving, e "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde.
Escritas em lados opostos do Atlântico, a primeira fala do momento de revelação com as mudanças logo após a revolução americana, e a segunda, da melancólica dor da mortalidade de um império que começou a desmoronar com, justamente, a revolução americana.

Van Winkle, para quem não sabe, vai um belo dia atirar em alguns esquilos (!) para desanuviar a cabeça das responsabilidades que sua esposa lhe impõe. Embora ela seja tratada como uma megera, hoje damos-lhe plena razão por desejar um marido que dedique tempo a sua família e ganha-pão como dedica-se a ajudar os outros. Sim, Van Winkle é bom, mas só para os outros.
Na montanha, topa com seres estranhos que o fazem beber até cair no sono... por vinte anos! Algumas interpretações indicam que seriam espíritos protetores da floresta ou da vila (com implicações interpretativas bem diferentes para cada caso). Ao acordar, Van Winkle descobre que sua esposa morreu, alguns de seus melhores amigos morreram em uma guerra terrível (onde sua Terra se tornou independente) e ele já é avô.

Dorian Gray é um jovem dandy inglês que vende a alma para que um quadro envelheça por ele, permitindo-lhe viver jovem todos os delírios hedonistas que ele acha merecer. O retrato da rica nobreza-burguesia da Inglaterra vitoriana (diga-se, o objetivo do retrato de Dorian é ser um retrato de sua Terra) é simplesmente genial em suas agulhadas e exibição de defeitos. Não esquecendo que o próprio autor era o dandy absoluto de seu tempo.

Um império perde sua maior colônia, que se torna um império ainda maior depois de um século e meio.
Rip Van Winkle não vê a mudança chegar, e saúda o rei da Inglaterra quando acorda de seu sono mágico. Os protetores da vila salvaram um homem bom da guerra para trazer algo altruísta do passado a um novo mundo? Ou os protetores da floresta puniram um homem que negligenciava sua própria família, devolvendo-o a um mundo completamente diferente daquele onde vivia privado dos melhores anos de sua juventude?
Dorian Gray se revela um monstro criado em tetas de um império agonizante, incapaz de ver a decadência que lhe seria natural se abrisse os olhos para si mesmo. Um retrato moderno dos decadentes nobres romanos, cegos de vinho, riqueza roubada e prazeres, para o mundo bárbaro que batia na sua porta.

Situados em duas extremidades do século XIX, Van Winkle e Gray se odiariam instantâneamente caso se encontrassem. Tendo perdido a juventude, a inveja de Van Winkle acenderia o estopim, mas o menosprezo de Gray para com as pequenas coisas que fazem mais doloroso ainda para seu oponente ter perdido vinte anos de vida (perder o crescimento dos filhos, a fazenda onde trabalhava sua subsistência e os amigos de bate-papo) tornaria esse encontro algo memorável.

Um lado meu torce por Gray. Outro, que a maioria das pessoas diz apoiar quando está imersa em sua rotina de trabalho duro pós-Éden, ajudaria Van Winkle a quebrar o jovem e seu retrato. No meio disso, subsisto com alguma força de vontade a cair em qualquer um dos lados.

E no fundo, no fundo, sei que o mundo no qual Van Winkle precisa se adaptar dá certo e evolui, enquanto aquele agarrado com unhas e dentes por Gray já estava moribundo quando ele nasceu.

Agora saiam da frente do computador e vão ler um bom livro. Ou dois. Nunca se sabe quando eles vão exibir semelhanças e diferenças incríveis entre si.

17.2.10

Cantoras em ternos de 3 botões

Acabou o carnaval e para todos os lados só se falava de desfiles e suas passistas, de Paris Hilton sendo carregada bêbada, de Madonna e seu chaveiro brasileiro assistindo sambistas sérios obrigados a darem showzinho particular a ela e do clipe de Alicia Keys gravado em Salvador onde Beyoncé se vestiu de brasileira-clichê-de-cartaz-de-turismo-sexual.

Embranquecida?

E é dessa última pessoa que vou falar aqui. Sim, admito, a Beyoncé é uma cantora competente, uma dançarina exemplar, uma musa pop indiscutível e tem uma carreira sólida e acima da média da mediocridade geral. Não que isso signifique alguma coisa em um mundo onde existe Avril Lavigne ou Justin Timberlake.

A questão está toda aí. Beyoncé é, em última instância, a musa pop dos sonhos mais conservadores e caretas do mundo. Não que eu exija dela ser uma Wendy O. Williams, mas ela é comportada demais, careta demais, sem sal demais.

Quem é Wendy O. Williams? Ó destreinado no mundo do punk rock, a senhorita Williams é a vocalista que se suicidou da icônica banda Plasmatics, ex-atriz pornô, a mais nua das mulheres a pisarem para cantar em um palco e nos seus últimos anos militante dos direitos dos animais e do vegetarianismo Straight edge. Os motivos de seu suicídio são pouco claros, mas ela era o extremo oposto da atual rainha do pop. Confira: http://www.youtube.com/watch?v=Q2eynNh5xHM

Beyoncé não tem a mínima obrigação de ser politicamente correta? É completamente alienada em termos de economia e política mundial, como demonstrado no episódio recente onde ganhou para fazer um showzinho particular pago pelo bolso de milhares e milhares de súditos do ditador Muammar Gaddafi da Líbia. Igualzinho ao que Elis Regina fez quando cantou "O bêbado e o equilibrista", provocando a ira de toda uma casta de velhos militares de um governo nada democrático tupiniquim, sabia? http://www.youtube.com/watch?v=6kVBqefGcf4

Adoro técnica vocal, amo trabalho bem feito. Mas até mesmo em palco Beyoncé parece técnica demais, perfeita demais. O uso de playback poupa o artista e torna tudo mecânico, é certo. A espontaneidade de uma avalanche de gelo de um show dela a torna um maravilhoso produto plástico, idêntico ao estilo de Janis Joplin em uma de suas raras composições, "Mercedes Benz" ( http://www.youtube.com/watch?v=i-4AheUl6ls ) e sua música de "social e poética importância", em suas próprias palavras, cantada com emoção indescritível, técnica péssima e suando às bicas gritando contra o excesso de consumismo.

Não tem a mínima obrigação de ser polêmica. Seu hit absoluto, "Single ladies", tem o horrendo subtítulo "ponha um anel nela", levando-nos a um monstruoso passado recente onde mulheres só tinham algum valor após se casarem (sem contar a coreografia pobre e vergonhosa que deve fazer a coreógrafa e cantora Paula Abdul se esconder debaixo da cama). Madonna lutou para libertar a reprimida sexualidade feminina por tanto tempo para agora o pop ter uma rainha defendendo o mesmo que minhas tias-avós?

Beyoncé, ao contrário do que foi dito por aí, NÃO quebrou o pau com a empresa de cosméticos que branqueou a foto dela usada em uma propaganda pois sua cor negra não combinava com o produto e com a imagem da fábrica.
Igualzinho a Billie Holiday, a menina que se tornou a Deusa do Jazz após ter lutado por anos com uma infância miserável, uma adolescência de prostituta e uma rotina de drogas e mais drogas para se manter acordada para os shows intermináveis exigidos para manter um padrão mínimo de vida (negra, pobre e ex-prostituta não ganhava muito, apesar de sua fama). Billie arriscou toda a sua carreira cantando a canção escrita por um judeu sobre "Strange fruits" nas árvores da Louisiana (os corpos dos negros enforcados pelos brancos sem julgamento, ou mesmo motivo em muitos casos). Confira COM CUIDADO, as cenas são assustadoras: http://www.youtube.com/watch?v=lGNIX4qa38E

Em suma, Beyoncé é uma agente da norma, rebelde como uma camisa pólo, cantando em prol da caretice e da falta de ousadia para encarar um mundo cheio de velhas respostas para novos problemas. Não fala mal de ninguém, não admite erros no sonho americano ou no sistema sócio-político-econômico-emocional-ambiental do planeta.

Ambiental? É, ela usa casacos de pele. Para quem nunca viu como um casaco de pele é feito, pode perguntar a outra grande cantora, Chrissie Hynde, dos Pretenders, que até presa já foi enquanto protestava junto às maiores ONGs de defesa do ambiente.

Estamos mal de musas pop...

7.2.10

Retratai-vos.


Frazetta: músculos, sexo, monstros, mais músculos no monstro, curvas, mais músculos nas curvas, e toda a potência de um jumbo em uma só cena.

Entre os muçulmanos, existe uma lei religiosa que impede a retratação gráfica de seres humanos (em algumas alas mais radicais, não só humanos). A idéia essencial é de que a criação é exclusividade de Deus e portanto é pretensão humana achar que podemos retratar aquilo que é considerado o ápice da obra divina.


Thor, ou "como Walt Simonson retrata a ação de um Deus contra monstros".

Isso nos deu os maravilhosos afrescos, texturas, arquitetura e arabescos do mundo islâmico, mas em compensação tolheu os artistas muçulmanos de criarem as histórias em quadrinhos, os equivalentes africanos e árabes dos retratos renascentistas e muitas outras formas de representação em escultura, desenho e por aí vai.

A arte em geral é reconhecida como o poder da expressão do mundo interno da criatura senciente e auto-consciente. Dentre as artes clássicas, reconheciam-se seis artes:
1ª, a Música, 2ª a Dança, 3ª a Pintura, 4ª a Escultura, 5ª o Teatro e 6ª a Literatura. Posteriormente, o cinema se tornou a 7ª.


Carmine Infantino: o mestre da velocidade em um papel estático.

Outras artes foram sendo agregadas desde o século 19, embora só o cinema tenha desfrutado de um posto cativo na lista. Ninguém discute que a fotografia é uma arte, mas seu posto de 8ª arte é posto como algo forçado por muitos críticos (dos quais discordo), assim como outras formas expressivas típicas da modernidade. Parece aquela criança birrenta tentando ganhar um lugar na mesa dos adultos. Os quadrinhos seriam a 9ª arte, e são mesmo uma expressão única. Os Videogames (ahahahah) a 10ª e a arte digital (photoshopar capa da play-boi vale?) disputaria o 11ª posto.


Shimamoto, o mestre do PB Brasileiro. Medo!

Não se discute o papel de cada representação destas, mas abrir demais o leque além destas 11 fica difícil. O videogame é altamente discutível, diga-se de passagem, dado que não se cria videogame sem pretensão de lucro e sem todo um esquema empresarial por trás dele. A videoinstalação, audioinstalação, cinestesioinstalação não são capítulos à parte nisso tudo? A arte não é inerentemente inútil, como dizia Oscar Wilde?


O Brasil tem seus supers. Raio Negro, Capitão 7 e Velta.

Tudo isso para dizer: amo quadrinhos. A representação humana nos quadrinhos é algo que extrapola o realismo, finca as bases de uma nova forma de retrato mítico da saga do herói, do poder imensurável, do mal em sua mais monstruosa roupagem, tudo isso junto! Os quadrinhos (mais uma coisa desconhecida) nasceram no Brasil na sua forma hoje conhecida, descendentes diretos das charges do século XVIII, mas apenas após jornais americanos publicarem tiras no formato se tornaram conhecidos do grande público mundial.


Desafio-te a encontrar um rosto igual a outro em um desenho de George Perez.

Não dá para imaginar como os antigos gregos imaginavam seus heróis míticos sem pensar que de alguma forma eles tinham em suas imaginações o poder de retratação que vemos hoje nos quadrinhos. Afirma sem pestanejar que a tecnologia de efeitos especiais evoluiu por pura inveja do poder dos quadrinhos de representarem o absolutamente irreal, e não é coincidência que o lucrativíssimo ramo do cinema de super-heróis ganhou espaço quando Matrix detonou os limites do que pode ou não ser mostrado em uma tela.


Frank Miller em sua melhor história, mas antes dos delírios gráficos belíssimos de Sin City.

Portanto, senhora mãe, senhor pai, quando seus filhotes estiverem com uma revista do Wolverine nas mãos, não o censure, não o mande fazer redação. Dê para ele o "Eu sou Wolverine", de Frank Miller e Chris Claremont, e digam que se ele quer ler o velho carcaju, é com aquilo que ele deve começar. Pois daquilo lá para encarar "Shogun", Jack London e Ernest Hemingway é um pulo.

Quando seu filho perguntar o que é um morro carioca, deixe-o ler o Zé carioca do Renato Canini (abaixo). É mil vezes mais saudável do que assistir qualquer filmeco favela-gangue-pobre-e-preto-se-matando tão ao gosto da classe média conservadora do país.


E quando ele começar a te perguntar se você tem um CD com a abertura 1812 do Tchaikovski, pode acreditar. É culpa de "V de vingança".

2.1.10

Sci-Fi!



Arthur C. Clarke profetizou que em 2010 seria especialmente relevante para a humanidade. As duas superpotências, União Soviética e Estados Unidos, uniriam forças para investigar no espaço os estranhos fatos alienígenas passados na história anterior, a muito mais famosa "2001 - uma odisséia no espaço".
Quaaaaaá há há há há há!!!
No cinema, o segundo livro não foi usado para criar o roteiro do segundo filme. O filme "2010 - o ano em que faremos contato" só usa o ano do título literário. E agora que chegamos a 2010 nem podemos pensar que o finado Clarke é o culpado por esse futuro sem graça que está diante de nós. Ele mal viu 2001 decepcioná-lo!

É o seguinte: me enchi de futurico. Quero teleporte, viagens espaciais baratas, fusão atômica produtiva, um aeromóvel pessoal, visão de raio-X (controlável, pois não quero ficar como o protagonista do filme "O homem com visão de raio-x", que surta quando enxerga absolutamente toda a verdade do universo), download de aulas de língua e kung-fu direto no cérebro, robôs como a Rosie dos Jetsons, cubos concentradores de matéria, governo planetário unificado, utopia educativa, clonagem de dinossauro/dodô/lobo-da-tasmânia/pomba-migratória americana e cia, e claro, a Enterprise! Já estamos em um bom caminho: a África do Sul vai ter uma copa do mundo e não existe mais o Apartheid oficial lá. Clarke nem pensou nisso quando escreveu o livro...

Do futuro distópico já estou cheio. Estamos perto demais de "1984", "Admirável mundo novo", "O homem duplo", "Mad Max" e por aí vai.

Ao fim do ano de 2009 eu estava cheio de coisas a falar sobre como foi esse ano terrível que acabou com final feliz, mas quer saber de uma coisa? Não tou a fim de retrospectiva. Que venha o novo! Que venha o futuro! Em alguma outra ocasião, talvez eu fale de uma ou outra coisinha relevante do ano passado, mas será do mesmo modo como relembramos da revolução francesa: como história.

2010 pode não ser o ano em que entraremos em contato com uma espécie alienígena, mas torça para entrarmos em contato com a raça humana. Ela está escondida em algum lugar por aí na Terra, debaixo desses monstros tecnocratas incivilizados, destes alienados espaciais e interioranos, dos reacionários preconceituosos marcianos. A humanidade é a espécie nova a ser descoberta por todos nós nesse futuro que começou hoje.

E Vaos torcer para o Brasil não cair de novo naquele tempo de idade média em que a década começou.

20.12.09

Desencapetamento geral!

Já viram isso nas portas de igrejas evangélicas? Pois é, igrejas que colocam faixas na porta com essa frase partem do pressuposto que somos todos encapetados, e seres sobrenaturais malignos grudam em nós e estão muito preocupados com a felicidade humana, a ponto de se dedicarem exclusivamente a sabotar a existência de quem quer que seja.

E quem está encapetado precisa passar lá no templo falar com o pastor, preferencialmente com o talão de cheques na mão, e se desencapetar para ir em frente.

Tem capeta muito pior por aí. Declaro aqui, para todos ouvirem e dar a força do consciente coletivo, que desejo todo o mal possível e imaginável aos capetas mundanos e mortais que há por aí. Desejo doença, fraqueza e miséria, baixa-estima, sofrimento e dor a todo aquele que feriu a mim e aos meus. E essa dor, lógico, seja exclusiva do ente maligno em questão. Declaro-os oficialmente amaldiçoados.

Igualmente o faço para cada político corrupto deste país, para cada criatura despótica andando pelos corredores da política mundial, para cada economista que numera os famintos como consequências do crescimento mundial, para cada mané que não assume seu compromisso com as gerações futuras e coloca empecilhos nos acordos para diminuição do desmatamento, da geração de gases estufa e salvamento de espécies.

E desejo a todos que não se enquadrem nisso Justiça, Amor e Prosperidade.

13.12.09

Deixa ela entrar, mesmo!



Para qualquer um mestrado em filmes de terror e seus personagens clássicos, a atual onda de vampiros emos celibatários, lobisomens "bom-selvagem" e regravações pobres de filmes idem pobres dos anos 80 é um chute no estômago.

Ser original em um filme que não tem a menor necessidade de ser fiel à realidade é no mínimo fácil. Ser original, contando uma boa história, com bons personagens e respeitando as convenções do gênero é um pouco mais difícil, mas certamente não tanto quanto foi pra a autora daquele filmeco adolescente de vampiro acabar com a noção de liberdade, prazer e abandono da repressão duramente conquistada pelas últimas gerações de contestadores.

E é por isso que eu aplaudo um (O?) dos melhores filmes do ano, um dos melhores filmes de terror dos últimos tempos e certamente um dos maiores filmes de vampiro de toda a história da sétima arte: "Deixa ela entrar" (“Låt den rätte komma in”).

Pessoas, ele só está passando em um cinema de São Paulo agora, mas corram para vê-lo. É de uma sensibilidade ímpar, além de climática e assustadoramente envolvente, a história da vampira de doze anos ("mas tenho doze anos há muito tempo.", ela diz) que fica amiga do menino cuja raiva contida por ser o capacho dos valentões da escola é mais assustadora do que qualquer ser sobrenatural.

Quem realmente conhece a mitologia dos vampiros conhece alguns elementos sagrados para criar as histórias, mas "Deixa ela entrar" cuida e recria alguns destes elementos sagrados com uma liberdade respeitosa (nada de não poder aparecer na luz do Sol por que brilha como uma mulata globeleza).

Aprendemos, por exemplo, que vampiros, quando entram em uma casa sem serem convidados, podem ser mortos no interior desta.É o elemento que batiza o filme, mas cria uma das cenas mais angustiantes, embora seja apenas um pequeno detalhe sem consequências do enredo, já criadas com um vampiro em cena.

E não, apesar de ser uma graça, a vampira não é um ser bonitinho acometido por culpa. Ela é uma assassina terrível e perigosa, e sob diversos aspectos notamos o cuidado da composição "predatória" da criatura. Estranha e deliciosamente, notamos que o diretor a recria com algo de felino, e não como um morcego ou outro sanguessuga qualquer. A nobreza ganha com este recurso destaca enormemente o modo como entendemos e respeitamos a criatura retratada. E dá-lhe sangue! O filme não nos poupa de mostrar o que significa ser uma criatura sobrenatural que vive de sangue.

Tão fascinante quanto a vampira é seu amiguinho humano. Apanhando do valentão da escola de uma forma bem humana (nada dos exageros hollywoodianos de Bullying escolar), dele brota algo que hora ou outra o faria entrar atirando no colégio. Funcionando como condutor da história, o menino é tão pálido que notamos nele sua condição de papel em branco sobre a qual é apresentada uma crítica social, é descrito um universo sobrenatural vizinho e terrivelmente próximo a nós, e desenhada a formação de uma relação tão amorosa quanto é possível para uma predadora sem culpa e uma pessoa.

E sem abobrinhas romanticidas. Aqui cabe uma citação roubada da crítica do G1: é uma “exploração impressionante da solidão e da alienação através de um reexame magistral do mito do vampiro”, declarou o júri do Festival de Tribecca, em Nova York, ao premiar o longa-metragem dirigido por Tomas Alfredson como “melhor narrativa” da competição.

Em suma, há muito tempo eu não saía tão feliz (e tendo tomado tantos bons sustos) de um cinema. Procurem nas locadoras em breve, comprem o filme, e não se assustem com a inesperada origem nórdica do filme. Ela dá um tom completamente diverso para tudo.

5.11.09

De quando Ulisses retorna a Ítaca.

Hoje é 5 de novembro.
Hoje terminou o ciclo dos piores 365 dias que já vivi na minha vida no que se refere ao que acredito, que luto, que faço para viver.
Hoje terminou a dor, a vontade de morrer que se abatia na cama, o ódio e seu poder imenso, horripilante e inescapável como as Fúrias mitológicas.
Eu devia ter tomado comprimidos iguais aos da Doida, a macaco-prego fêmea alucinada, e tido doces viagens serotoníticas para longe das pessoas e suas mediocridades?

Não consegui, durante todo este ano, falar sobre o tamanho da dor. Sobre como isso me transformou em algo muito pior do que eu era. De como tem chão para ser percorrido para que eu recupere o tanto perdido, o tempo gasto, a pele perca as rugas e o sono volte ao normal.

Mas agora acabou.

Para quem estava do meu lado, acredite: vocês não viram nada. Ninguém soube de mais do que uma parcela reduzida da sensação. Eu sou um ator, não esqueçam. E este ano foi aquele no qual mais atuei. Era isso ou ter que suportar os outros sofrendo comigo, por mim, incapazes de solucionar os problemas.

Sabe quantas maneiras diferentes existem de... não, melhor não falar. Há quem vá usar contra alguém.

Meditem, pessoas. E pensem na benção da ignorância. Por vezes ela vale a pena. Hoje deixo aqui o que resta de terrível desse ano. E saúdo o búfalo por ter enfrentado o rato e o transformado em patê.

A partir de amanhã, os posts voltam ao lado feliz do mundo.