19.3.08

Maria, José

A páscoa acontecerá em alguns dias. A nossa sociedade, acostumada com o estranho paralelo de feriados-para-escapar-da-cidade-grande ditados pelos dois pontos cruciais do líder religioso da maioria, isto é, o nascimento e a morte; parece estranho e (o que é pior) normal entender o andamento do mundo desta forma. Pois o cristão vive na corda bamba entre nascimento e morte, entre divino e espiritual. Entre Maria e José.

Seguindo a tradição dos heróis solares, Jesus nasce de uma virgem, diretamente da divindade, e é chamado Issa entre alguns estudiosos, e ele também é estudioso, mas dos ensinamentos dos orientais, segundo outros. Teria passado alguns anos (os anos desaparecido) na Índia ou Tibete, aprendendo. Há quem diga que os essênios foram seus mestres.

Mas tudo isso é irrelevante: a igreja diz que suas capacidades são fruto de sua origem divina. a cura, a sabedoria, não poderiam vir de fontes humanas. Não podem vir de reflexão, esforço, estudo disciplinado e anos de treino. Em suma, quanto mais Jesus for divino, menos podemos sonhar em ser como ele.

O pai, também chamado de "O corno manso mais famoso do mundo " José, era um carpinteiro. Não, ele não era miserável, pois artesãos eram valorizados na época. Algumas correntes dizem que José era razoavelmente mais velho que Maria, e teria assumido um filho que não era seu por conveniências de época. Maria, por sua vez, já ganhou a fama de ter dormido com um soldado romano e tido um filho do invasor. De qualquer modo, Jesus teve irmãos, aliás bem definidos nos evangelhos.

Daí, com todos estes pontos polêmicos, qual o problema em achar o rebelde mais famoso de todos os tempos um reles mortal? Isso diminui o papel dele em propagar uma filosofia de não-violência e tolerância? Ou dá a ele a responsabilidade pela destruição de todo o conhecimento da antiguidade nas mãos dos fanáticos religiosos da idade média?

Entre as faces de mãe virgem e pai trabalhador, encontramos um cara razoavelmente humano, mas esta humanidade foi sistematicamente eliminada para afastar-nos de seu aspecto revolucionário. Não é demais lembrar que os romanos eram o povo a ser seduzido, portanto reforçar o aspecto rebelde de Jesus contra o invasor não era útil aos primeiros evangelizadores. Antes tê-lo como um fazedor de ovelhas (e não pastor, mas criador de passivos na população) ao invés de um leão de Judá.

A vingança veio logo. O cristianismo foi um dos responsáveis pela queda do império romano.

Mas agora, quando procurar por um bom bife na mesa nesta sexta e não vir, (por que cristão não considera peixe um bicho?) faça um bom brinde com vinho ao aspecto humano da divindade. Seja ele qual for. Afinal, os Deuses agradecerão por mantermos em vista nossas próprias divindades internas, e regozijam-se quando lembramos do humano dentro deles.

E, se um dia o Deus dos católicos, evangélicos, judeus e islâmicos admitir sua humanidade intrínseca, talvez tenhamos um pouco menos de briga entre seus fiéis. Afinal, ser deus é uma profissão muito humana.

17.3.08

Adriano

Situada em algum ponto na hoje sem sentido fronteira entre as terras dos pictos e os domínios romanos na ilha da Bretanha, a muralha de Adriano, construída a mando do imperador de mesmo nome para dificultar as invasões vindas do norte da ilha ao império, serviu por muito tempo para delimitar as terras dos povos civilizados e cristãos daquelas dominadas pelos temidos pagãos do norte.

Neste dia de San Patrick, é bom lembrar da divisa imposta pelos romanos. Eram povos invasores? Sim. Saxões, pictos, jutos, todos desejosos de uma fatia das férteis terras do sul. Porém, mais invasores eram os romanos. San Patrick que vá encher a cara num Pub, e pare de nos encher o saco. Nessie agradece.

Nas tentativas de expulsar os povos pagãos, surgiram muitos heróis. Mas destes, nenhum foi um Arthur. Salvo, o próprio.

Se tornou moda recentemente lembrar da provável base romana do mito arturiano. Não é mais provável que a origem escocesa de Merlin, ou francesa de Lancelot du Lac, mas vamos lá. Arthur é entendido historicamente como um grande chefe de guerra nas constantes lutas empreendidas pelos povos do sul da Bretanha contra os invasores do norte, animados com a saída dos romanos ocorrida por volta do século IV.

Eu nem saberia começar um texto que abarcasse todas as facetas das lendas do Rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda. Vou me ater à muralha. Afinal, ela ainda está lá. Os Highlanders (escoceses) ainda a vêem como uma prova do medo que os galeses, ingleses e romanos tinham deles. E de mais uma penca de povos. Quando Arthur conseguiu, por um breve sopro de tempo, manter os invasores atrás da muralha, ele apenas adiou por algumas décadas a mistura que deu origem ao povo bretão. Romanos, celtas, irlandeses, normandos, saxões e por aí vai formaram um dos povos europeus mais miscigenados em sua origem de que temos notícias.

E capaz de nos dar os Beatles.

Quando um imperador romano achou melhor começar a moda, retomada nas últimas décadas por países tão diferentes quanto a Alemanha do pós-guerra e Israel, de dividir para manter longe, não imaginava que um dos guerreiros mais capazes a defender suas esperanças se tornaria muito maior que ele mesmo, nem que o fracasso de seu plano daria origem à cultura de raízes mais longas do século XIX em diante.

Portanto, é sempre bom lembrar: nossa vontade de se isolar pode ser imprevisível. No final das contas, pode nos fazer mais conhecidos do que antes.